Carlos III, um rei à procura do amor que nunca teve

Ainda gaiato, teve de tomar banho de água fria, foi atacado e enxovalhado, era deliberadamente agredido nos jogos de râguebi pelo mero prazer de “bater no futuro rei”. Depois, vieram as polémicas. Fartas e diversas. O fracassado casamento com Diana, as cartas secretas para os ministros, as polémicas declarações sobre o ambiente e a arquitetura moderna. Agora, Carlos III espera, por fim, conquistar a admiração plena dos súbditos.

No severo colégio de Gordonstoun, cravado lá no nordeste da Escócia, as regras estavam gizadas ao milímetro. Todos os dias tinha de fazer a cama e engraxar os sapatos, correr longos quilómetros pelo campo e tomar banho de água fria. Nada que o gelasse como a chacota e as partidas, a cruel alcunha de “orelhas de abano” – como se não bastassem os complexos que já tinha por causa das grandes orelhas -, o medo de ser agredido pelos colegas enquanto dormia. “Um inferno”, como dizia nas cartas que enviava para casa e onde tantas vezes se confessou profundamente só e infeliz. Até nos jogos de râguebi do colégio era deliberadamente agredido, “pela diversão de bater no futuro rei de Inglaterra”, qual prenúncio metafórico do que haveria de ser uma boa parte da sua vida. Logo Charles (ou Carlos), que já de si era tímido e inseguro, que cresceu com as dores de ter uma mãe distante – as obrigações da Coroa assim ditavam – e um pai severo, que foi educado entre tantos rituais e protocolos que mal lhe sobrou uma nesga de espontaneidade, “handicap” que haveria de ser entrave sério a novas amizades. Logo ele que foi o primeiro herdeiro do trono a aprender longe do respaldo do Palácio de Buckingham, algo que, perceber-se-ia a posteriori, acabaria por constituir-se como primeiro trauma numa vida paradoxal e atribulada. Agora, aos 73 anos, depois de 70 a ostentar o pesado título de príncipe herdeiro, acaba de ser aclamado rei do Reino Unido.

Carlos III, o homem que, como escreveu Roxanne Roberts, afamada repórter do “The Washington Post”, “passou a vida inteira à espera do seu primeiro e único emprego”, faz-se rei com a certeza de um lugar na História: é o mais velho a assumir cargo, o que mais tempo esperou para subir ao trono (e, por consequência, o que mais tempo teve para se preparar), foi o primeiro herdeiro britânico a ter formação superior. E se os dois últimos pontos podem ajudar a um prognóstico risonho, não há como tornear as dificuldades prévias que enformam o reinado que aí vem. Desde logo, o poderoso e exigente legado da mãe, Isabel II, a mulher que se fez rainha aos 25 anos sem que se tivesse preparado para isso e acabou a tornar-se protagonista do mais longo reinado da história do Reino Unido, caso raro de consenso e popularidade dentro e fora de portas, “a rocha em cima da qual a Grã-Bretanha moderna foi construída”, como sublinhou a recém-empossada primeira-ministra, Liz Truss, no seu discurso de despedida da rainha. Mas também, de volta a Carlos III e à desconfiança que paira sobre o seu reinado, os problemas que lhe foram ensombrando a vida enquanto príncipe. Desde os já referidos tempos difíceis no colégio ao triângulo amoroso com a mulher que lhe quiseram impor (Diana Spencer, que acabaria por falecer num acidente de viação em 1997) e a que tardou a poder amar sem amarras (Camilla Parker Bowles). Sem esquecer as tomadas de posição controversas que tão frequentemente lhe valeram o desdém alheio e críticas impiedosas. Não raras vezes, houve mesmo colunistas de vários jornais britânicos a apelidá-lo de idiota, sem receio aparente de ofenderem os seus leitores.

Carlos Filipe Artur Jorge, o primogénito da rainha Isabel II e do príncipe Filipe, duque de Edimburgo, nasceu no Palácio de Buckingham em novembro de 1948 e foi, praticamente desde o berço, preparado para ser rei
(Foto: AFP)

Não surpreende, por isso, que numa sondagem realizada em 2016, só um quarto dos inquiridos tenha dito que gostava de ver o príncipe Carlos a suceder à rainha Isabel II, com mais de metade dos britânicos ouvidos nesse estudo a apostar as fichas em William, o primogénito de Carlos e Diana. Por essa altura, um longo e marcante trabalho da revista americana “The New Yorker”, intitulado “Where prince Charles went wrong” (que, numa tradução livre, será algo como “onde é que o príncipe Carlos errou”), o monarca era retratado como “um homem profundamente impopular”. “Mesmo entre aqueles que garantem considerá-lo um tipo decente, há uma convicção generalizada de que ele faz mais mal do que bem à monarquia”, podia ler-se. “Foi sempre esta figura desfocada em segundo plano, ofuscado pelo brilho da sua amada mãe, pela excitação à volta da sua falecida esposa e pela adulação a William, Kate e Harry”, resumiu Sally Bedell Smith, autora de uma biografia não autorizada do então príncipe Carlos, publicada em 2017. Na altura, revelou ainda que, durante os contactos e as entrevistas que fez, se deparou com uma tirada frequente: “Coitado do Carlos!”. Uma condescendência generalizada que de alguma forma ajuda a definir uma boa parte da vida do eterno mal-amado da Coroa britânica.

Mas o tempo parece estar lentamente a encarregar-se de o livrar do rótulo de patinho feio. Desde logo porque o passar dos anos foi apagando, ou no mínimo minorando, o ódio de estimação dos que não lhe perdoaram a relação extraconjugal com Camilla e o “péssimo marido” que foi para Diana. Depois, porque se as posições que foi adotando em relação a temas como o ambiente e a arquitetura moderna serviram, durante anos, de arma de arremesso e enxovalho a muitos dos seus críticos, a relevância que estas temáticas têm conquistado haveriam de transformar Carlos numa espécie de ativista pioneiro de questões fulcrais, arrojo que tem granjeado forte simpatia entre os súbditos mais jovens.

Carlos surge no colo da mãe, com apenas um mês
(Foto: Intercontinentale/AFP)

De resto, até as primeiras intervenções que fez após a morte da mãe parecem mostrar que está no bom caminho. Pela sobriedade, pela vontade de dar continuidade ao legado e ao registo da progenitora, pela intenção expressa de se dissociar de certas causas que sempre lhe foram caras. “Nota-se-lhe a consciência de que há alguma ansiedade quanto à possibilidade de ele usar a sua função de um modo que se desvie daquilo que têm sido as responsabilidades da monarquia constitucional nos nossos tempos, sobretudo quando a rainha agora desaparecida se notabilizou justamente por impedir que as suas opiniões fossem dadas a conhecer”, sublinha Rui Carvalho Homem, diretor do departamento de Estudos Anglo-Americanos da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. “Quando no outro dia, logo no primeiro discurso, deu a entender que se ia afastar de algumas instituições de utilidade pública que tinha criado, foi justamente para mostrar que não ia continuar a advocacia de certas causas pelas quais se notabilizou”, refere o docente, que vê Carlos III como alguém “altamente competente para manter níveis elevados de aprovação e simpatia por parte da opinião pública em relação à monarquia, numa altura em que alguns dos acontecimentos que foram mais substanciais no passado [referindo-se às muitas polémicas que foram marcando o seu percurso] começam a ser já remotos”. D. Duarte Pio, duque de Bragança, que já por várias vezes privou com o novo rei, concorda. “O povo inglês, que ficou muito emocionado com a morte da rainha, no dia seguinte foi com uma grande alegria celebrar o novo rei. Sem dúvida que é um bom prenúncio. Estão certamente reunidas as condições para um bom reinado.”

“Whatever it means”

Nascido no Palácio de Buckingham em novembro de 1948, três anos depois de término da II Guerra Mundial, Carlos Filipe Artur Jorge foi o primogénito de Isabel e Filipe, tornando-se herdeiro da coroa quando era pouco mais do que bebé, por culpa da morte do seu avô materno, o rei Jorge VI. Com apenas nove anos, recebe o título de príncipe de Gales, ainda que tenha tido de esperar até aos 20 para a cerimónia de investidura. Aprende o bê-á-bá da leitura e da escrita no conforto do palácio, mas não tarda a ir para escola, tornando-se, como já foi dito, no primeiro membro de família real a fazê-lo. Frequenta primeiro um externato, depois uma escola em regime de pensionato (ambos em Londres), até se mudar, por vontade do pai, para o referido colégio de Gordonstoun. Mais tarde, chega a passar um ano num colégio australiano, mas acaba por prosseguir os estudos em Cambridge, no Trinity College, onde estuda História, Arqueologia e Antropologia. Recebe o diploma de Bachelor of Arts em História em 1970. Por essa altura, começara já a dar os primeiros passos na vida monárquica. Seguem-se vários anos de formação militar: faz o curso de piloto de alto nível na Royal Air Force (RAF), passa pela Royal Navy e pela Escola Naval de Greenwich, conclui a carreira militar em 1977 com o grau de capitão de fragata na Marinha e de tenente-coronel na RAF.

Carlos recebeu o título de príncipe de Gales com apenas nove anos, mas a cerimónia de investidura só aconteceu já depois de completar 20
(Foto Central Press Photo LTD/AFP)

A vida amorosa é que esteve longe de ser tão retilínea. Com 29 anos, Carlos tinha a sua formação praticamente concluída, era já conselheiro da rainha (o que lhe dava acesso a tudo o que era documento oficial), mas faltava um derradeiro passo, fundamental para a instituição monárquica: um casamento que lhe permitisse, no mínimo, dois filhos – um herdeiro e um sobresselente – para que a continuidade da dinastia de Windsor estivesse assegurada. O príncipe de Gales, então um dos solteiros mais desejados do Mundo, até já tinha tido umas quantas namoradas, nenhuma com pergaminhos para ascender a princesa. O próprio presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, tentou fazer um arranjinho com a filha, Tricia, sentando Carlos ao lado dela durante a visita do príncipe a Washington em 1970. Não resultou. Foi também nesse período que se envolveu pela primeira vez com Camilla. Mas a agora rainha consorte trocou-lhe as voltas. Numa das saídas dele com a Marinha, casou-se com outro. Mais tarde, pressionado pela ideia de ter que casar e constituir descendência, o príncipe decide-se por Diana Spencer, Lady Di, apesar de não se conhecerem aprofundadamente e de não haver grandes sentimentos. Prova disso foi a inesquecível resposta que Carlos deu quando lhe perguntaram se estavam apaixonados: um elucidativo “whatever it means” (algo como “o que quer que isso queira dizer).

Pressionado a contrair matrimónio e a assegurar descendência, o príncipe Carlos casou, em julho de 1981, com Diana Spencer
(Foto: DR)

Tinha tudo para correr mal. E correu. José de Bouza Serrano, antigo embaixador que acompanhou Carlos numa das suas visitas a Portugal (ver caixa), e que recentemente lançou o livro “A viúva de Windsor”, editado pela Oficina do Livro, no qual dedica um capítulo ao agora rei, recorda porquê. “É verdade que era uma inglesa sem passado, virgem, com uma genealogia muito boa. Mas depois havia uma fossa abissal entre os dois. Carlos tinha uma formação intelectual diferenciada, gostava de música, de ópera, tocava violoncelo, adorava poesia, tinha uma carreira naval sólida. E a Diana estava a milhas desse mundo. Isso rapidamente se fez notar. Dão um herdeiro à coroa, mas sempre num clima de muita tensão. E quando nasce o segundo filho a coisa começa a descambar de vez.” Algures por essa altura, o príncipe terá reatado a ligação com Camilla Parker Bowles, agora sob a forma de uma relação extraconjugal que Diana nunca conseguiu digerir. Para a história ficou a inesquecível entrevista em que a princesa disse que havia “três pessoas” no casamento.

O casamento esteve longe de correr bem. Depois de anos de tensões e infidelidades, separaram-se em 1996. Diana morreu um ano depois, num acidente
(Foto: AP)

E assim a relação se degrada ao ponto de se tornar insustentável. E de ter sido “a rainha a escrever uma carta a cada um deles a dizer que tinham de se divorciar”, como lembra José de Bouza Serrano. A separação fica selada em 1996, com a princesa a receber uma indemnização astronómica (mais de 20 milhões de euros) que de pouco lhe serviu. No ano seguinte, morre em Paris, num acidente de viação que alimentou horas e horas de noticiários por todo o Mundo. E que contribuiu para degradar ainda mais a imagem do príncipe, já então visto como o marido infiel que não soube respeitar Diana (mesmo que, a partir de dado ponto, os casos extraconjugais da princesa também fossem conhecidos). Logo ela que caiu no goto do povo como nenhuma outra, que até abraçou um doente com sida, num tempo em que a doença ainda estava rodeada de preconceito. Quanto a Carlos, acabaria por assumir a relação com o amor da vida dele, Camilla Parker Bowles. Casaram em 2005. “Chegou um momento em que Carlos explicou à mãe e aos filhos que Camilla era uma parte inegociável da sua vida. E progressivamente ela foi-se aproximando da instituição monárquica. Com ‘charities’, com clubes de leitura, com uma série de iniciativas. E eventualmente acabou por ser acolhida pela Coroa.”

Furúnculos e aranhas negras

No meio desta vida amorosa novelesca, Carlos vai cumprindo as suas obrigações reais, desde logo como duque da Cornualha, região onde é particularmente acarinhado. João Figueirôa-Rêgo, doutorado em História e interessado pelo estudo das monarquias, a britânica em particular, desde sempre, lembra, a propósito, um episódio particularmente elucidativo. “A dada altura, um lojista que era seu rendeiro teve o azar de durante a noite ter um incêndio na loja e de ficar com o espaço destruído. Alguém contou isto ao então príncipe Carlos e ele no fim de semana seguinte não só apareceu lá disposto a pagar toda a reparação da loja como ordenou que não se cobrasse renda até a casa recuperar. Ao contrário do que possa parecer, até porque ele não tira dividendos publicitários disso, tem uma proximidade muito grande com as populações com quem tem privado. E eles têm-no em grande consideração.”

Depois de anos a tentar manter Camilla na sombra – ainda que os tabloides mal o permitissem -, Carlos casa-se por fim com a atual companheira em 2005
(Foto: AP)

Simultaneamente, Carlos ia fazendo cavalo-de-batalha em certos temas que lhe são caros. Mesmo num tempo em que defender essas causas era rastilho para criticismos maldosos e tentativas de humilhação. Basta ver que há quase quatro décadas, em 1985, num tempo em que estas questões andavam longe de ser questões, apostou numa quinta biológica, onde instalou uma reserva de terras cultivadas sem pesticidas e promoveu a criação de bovinos ao ar livre. A imprensa britânica não perdoou. “Príncipe das batatas”, satirizaram então. “Foi um precursor pelas coisas ecológicas. Numa altura em que as pessoas faziam piadas em relação ao tema, ele já se interessava pelo assunto”, enfatiza João Figueirôa-Rêgo, primo da falecida Paula Rêgo. Lembra ainda que o novo rei tentou sempre “preservar o gosto pela arquitetura tradicional inglesa”, porque entendia que se estavam a descaracterizar as cidades. No final de década de 1990, esteve ativamente envolvido na criação de “Poundbury”, uma cidade experimental criada do zero, seguindo os preceitos arquitetónicos que Carlos sempre defendeu. Foi ainda o autor de tomadas de posição fortes, ainda hoje recordadas. Em 1984, por exemplo, descreveu os planos para modernizar a National Gallery em Londres como algo semelhante a adicionar um “monstruoso furúnculo no rosto de um amigo muito elegante e querido”.

E se as insistentes chamadas de atenção de Carlos tiveram o condão de dar visibilidade à questão, entretanto acarinhada por uma vasta legião de arquitetos e críticos de design, também lhe valeram uma série de anticorpos, que acabariam por fazer ricochete. D. Duarte recorda isso mesmo. “Defendeu muito uma arquitetura equilibrada, que se integrasse na Natureza e não fosse chocante. Lutou muito para proteger bairros antigos, operários, de tijolo, que estavam a ser comprados e demolidos por empresas de construção civil. Mas isso criou um conflito enorme com grandes empresas dedicadas aos interesses imobiliários, que começaram a atacar ferozmente a Camilla. O que me parece é que ele acabou por fazer um acordo com esses grupos: eles deixavam de a atacar e ele deixava de os atacar a eles.”

Agora, aos 73 anos, enfrenta o desafio para o qual se preparou ao longo de sete décadas: continuar o trabalho da mãe, que com o tempo ascendeu a figura mediática global.
(Foto: Tolga Akmen/EPA)

A lista de polémicas de Carlos não ficou por aqui. Nos últimos 40 anos, destacou-se como um dos principais defensores de tratamentos alternativos ou complementares à medicina tradicional. Desde 2019, é mesmo o patrono da Faculdade de Homeopatia do Reino Unido. E não hesitou em defender a expansão da prática no serviço nacional de saúde britânico (NHS). Mais uma vez, a posição não foi consensual. Entre os que o acusaram de pressionar o Governo a adotar propostas sem sustentação científica, e até de contribuir para o afastamento de um professor universitário que criticou o reforço da comparticipação da homeopatia no serviço nacional de saúde britânico, recebeu um novo epíteto. Pouco simpático, claro. “Príncipe da anticiência.”

Foi ainda protagonista numa polémica que envolvia pressões exercidas junto de políticos sobre várias questões do foro público, da Saúde ao Ambiente. Numas quantas cartas enviadas a ministros, que ficaram conhecidas como memorandos da “aranha negra” pela sua caligrafia rabiscada, o herdeiro questionava os governantes sobre uma ampla gama de assuntos. Essas cartas foram tornadas públicas em 2015 e incluíam, entre outros tópicos, o seu desgosto pela arquitetura moderna, tendo então sido acusado de ultrapassar os limites. No entanto, num documentário produzido pela BBC One em 2018, na altura em que completou 70 anos, Carlos jurou que nunca interferiu diretamente na política. E quando lhe perguntaram se seria um rei ativista, respondeu assim: “Não sou assim tão estúpido”.

Desafios paradoxais

Esse é precisamente um dos grandes desafios que terá pela frente agora que subiu ao trono. “Há uma fronteira inexpugnável para o rei que é de não se imiscuir no dia a dia da governação e, portanto, a partir deste momento, Carlos III deixa obviamente de emitir as suas opiniões”, salienta João Távora, presidente da Real Associação de Lisboa. Lembra, no entanto, que contrário da rainha Isabel II, Carlos teve durante décadas a liberdade de exprimir opiniões na sua atividade de serviço público. “E isso não é necessariamente mau”, ressalva. “Penso que isso pode funcionar como um capital nas expectativas das pessoas. Perante uma situação disruptiva, os súbditos poderão transpor questões que anteriormente o príncipe teve oportunidade de referir. E esse é um espaço de metapolítica que pode funcionar como um capital importante.” Távora aponta ainda “a grande crise que aí vem, com uma inflação gigantesca e a instabilidade política que isso traz” como um dos principais desafios que Carlos III terá pela frente. “Há uma atomização social crescente, uma conflitualização muito grande que é uma ameaça para qualquer regime político. E a monarquia pode ser a instituição ideal para enfrentar isso, mas nenhuma está a salvo.”

O rei dirige-se à multidão que o aguardava na chegada ao Palácio de Buckingham, um dia depois da morte de Isabel II
(Foto: Yui Mok/POOL/AFP)

Há ainda outros desafios substanciais a ter em conta, tanto do ponto de vista interno como externo. José Palmeira, professor de Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade do Minho, explica o que está em causa. “Do ponto de vista interno, o maior desafio que se coloca, e que de resto é uma herança da mãe [Isabel II], tem a ver com a unidade do Reino Unido. O Reino Unido tem, sobretudo na Escócia, um problema que tem a ver com o facto de uma parte significativa dos cidadãos querer ser independente. Num passado recente, houve um referendo em que os defensores da independência perderam por pouco, mas na altura o Reino Unido ainda fazia parte da União Europeia. Como votaram massivamente a favor da continuidade, agora poderão estar mais do lado da independência. E isso pode colocar-se em cima da mesa brevemente.” Uma situação semelhante poderá ocorrer na Irlanda do Norte.

A nível externo, há ainda a questão da Commonwealth, um grupo de cooperação formado pelo Reino Unido e ex-colónias, que abrange mais de 50 países e de dois biliões de pessoas, e que ameaça desintegrar-se num futuro próximo, com vários estados-súbditos a anunciarem referendos. E qual a dimensão do papel que o rei pode ter em todas estas questões? “Limitadíssimo”, admite José Palmeira. Aqui entra o paradoxo do cargo. “O rei, por muito prestígio que tenha, não consegue evitar uma situação que depende da vontade popular e da abertura que haja por parte do Reino Unido de deixar que os cidadãos se pronunciem [no caso da Escócia, por exemplo]. Por um lado não pode mudar o rumo dos acontecimentos, por outro isso penaliza-o. Não emite opinião, mas acaba por sofrer as consequências daquilo que corre mal. E pode do ponto de vista político cair em descrédito.” Quando o que Carlos III almeja é certamente o oposto, receber, por fim, o único amor que nunca teve: o dos seus súbditos.

Novo rei esteve em Portugal três vezes

Carlos e José de Bouza Serrano
(Foto: José de Bouza Serrano/Leya)

Em 73 anos de vida, o então príncipe Carlos visitou o nosso país em três ocasiões: na primeira, em fevereiro de 1987, foi ao Porto, ao lado de “Lady Di”; na segunda, em junho de 1998, veio sozinho e deslocou-se a Alcochete (distrito de Setúbal); na terceira, em 2011, já casado com Camilla Parker Bowles, trouxe a companheira e andou por Lisboa e arredores, com nova paragem em Alcochete, desta vez para conhecer a Vitacress, empresa especializada em vegetais frescos, área que sempre foi cara ao príncipe de Gales (ver texto principal). E por falar em temáticas que sempre foram queridas ao duque da Cornualha, essa última visita, em 2011, incluiu também paragem em Évora, para conhecer projetos de energias renováveis daquela cidade, bem como uma passagem pelo Clube Naval de Cascais. José de Bouza Serrano (na foto) que, enquanto chefe de protocolo, foi cicerone da visita, lembra “um homem muito cordial, muito culto, muito cortês, sempre interessado em perguntar e saber coisas”. E que, por sinal, não gosta de almoçar – “saltava sempre essa refeição” – nem dispensa um bom gin à hora de jantar.