Cancro do testículo. É hora de perder a vergonha

Em muitas situações, o cancro do testículo pode hipotecar a fertilidade (Foto: AdobeStock)

Nos dias que correm, o diagnóstico não é uma sentença de morte, mas não deixa de ser alarmante. Homens entre os 15 e os 35 anos são os mais afetados. Estar atento a sinais é fundamental. Apostar no autorrastreio sem tabus é imperativo.

“Homens, olhem para os vossos testículos.” Este não é o slogan de uma campanha de sensibilização, mas sim o alerta do médico urologista Rui Almeida Pinto em relação a um cancro que atinge sobretudo o sexo masculino em idade jovem. Atualmente, segundo o responsável do Centro de Referência do Cancro do Testículo do Centro Hospitalar de São João, “existem cerca de 350 casos estimados no Serviço Nacional de Saúde, mas o que se diz é que haverá outra metade no regime privado”. Ou seja, “teremos o equivalente a uma incidência de 400/450 casos por ano de orquiectomia, que é o tratamento padrão e inicial do cancro do testículo”, especifica, frisando que o número de casos “tem vindo a aumentar nos últimos anos”.

O especialista sublinha que “95% dos tumores intratesticulares são malignos”, distinguidos clinicamente “por lesões de consistência dura, às vezes com alguma inflamação ou líquido associados”. Por isso, é importante distinguir as intratesticulares das extratesticulares. “As lesões extratesticulares habitualmente são benignas”, acrescenta Rui Almeida Pinto, apontando ainda para “um fenómeno mais raro, que são tumores de células não germinativas que têm critérios de malignidade”.

Nos dias que correm, o diagnóstico não é uma sentença de morte, mas precede “um annus horribilis” nas palavras do urologista. “Isto porque, entre a notícia, a cirurgia, a orientação, o seguimento e a recuperação até emocional pessoal e familiar do paciente é um ano até se esquecerem que tiveram cancro no testículo, pelo menos”, explica. A maioria dos casos resume-se à orquiectomia radical, nome dado ao tipo de cirurgia que remove o testículo (ou testículos) com cancro. Nos outros, “consoante o estadio e a caracterização histológica do tumor, pode seguir-se vigilância ou um ou dois ciclos de quimioterapia. A partir daí, vamos vigiando”, indica o também professor auxiliar da Faculdade de Medicina do Porto, além de reconhecer que “há uma exceção de tumores que tem extensão extratesticular, as chamadas metástases retroperitoniais ou até pulmonares e outras viscerais”.

Não deixar andar

João Lamoza terminou há pouco mais de uma semana um ciclo de quimioterapia, cerca de três meses depois do diagnóstico. Aos 34 anos, sentiu um nódulo no testículo direito – geralmente indolor – quando tomava banho, mas só um mês ou dois depois é que decidiu fazer uma ecografia que revelou o cancro. “O tempo que levei a ganhar coragem não interferiu com o que veio a seguir, mas sei que se tivesse deixado andar seria mais complicado”, confessa o ator que a série “Morangos com açúcar” deu a conhecer.

“O tempo que levei a ganhar coragem não interferiu com o que veio a seguir, mas sei que se tivesse deixado andar seria mais complicado”, reconhece o ator João Lamoza
(Foto: DR)

Acompanhado desde o início no Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa, o artista foi operado e colocou uma prótese. A fase seguinte foi “saber que tipo de tumor era e se se tinha espalhado, o que não aconteceu”. João Lamoza fez quimio preventiva, o que lhe baixou a imunidade ao ponto de o organismo não se conseguir defender de uma infeção na garganta, obrigando a internamento. Quando falou com a “Notícias Magazine” já estava “em casa a recuperar da infeção”.

Concluídos os tratamentos, o antigo “moranguito” sabe que será “um doente oncológico durante algum tempo”, o que implica exames trimestrais neste primeiro ano, que depois se tornarão mais espaçados. Consciente da importância das histórias que ouviu de pessoas que passaram, ou estão a passar pelo mesmo, o agora diretor de casting espera que o seu testemunho “também ajude alguém”.

Descoberta ocasional

Serafim Resende viveu o problema há 21 anos, pouco depois de se ter estreado na paternidade. Descobriu que algo não estava bem por acaso. Quando reparou “num caroço no testículo” estranhou e chamou a mulher, enfermeira de profissão.

“Demorou cinco dias até ser operado” no Hospital de São João, no Porto, relembra o empresário, recuando ainda até ao momento em que o médico não gostou do que viu e avançou para os exames que confirmaram o cancro. “Foi a primeira vez que me caiu a ficha”, afirma, aos 51 anos. Nesse dia chorou no regresso a casa, antes de se inspirar na vontade férrea de ver o primogénito, então com três meses, crescer, tendo como referência o antigo campeão de ciclismo Lance Armstrong, que, cinco anos antes, tinha vencido um cancro testicular com metastização pulmonar, abdominal e cerebral.

Após a orquiectomia unilateral, Serafim prescindiu da prótese, antes de cumprir um protocolo de quatro ciclos de quimioterapia. Havia a possibilidade de ficar estéril, mas dois anos e meio depois, de forma natural, Serafim Resende voltou a ser pai de mais um rapaz. Os filhos têm agora 21 e 18 anos e sabem o que se passou, exemplo para tomarem atenção à própria saúde.

Em muitas situações, o cancro do testículo pode hipotecar a fertilidade, daí que, “quando vemos um doente com cancro do testículo, a primeira coisa que fazemos é a criopreservação de esperma, verificar os espermatozoides recolhidos e preservá-los”, adianta o responsável do Centro de Referência do Hospital de São João. Salvaguarda que, “se o doente for submetido a quimioterapia, é preciso esperar 6 a 9 meses para ter produção de espermatozoides saudáveis após o término do tratamento”.

Futebolistas dão o exemplo

Ao longo dos anos, atletas de alta competição têm partilhado a luta contra este tipo de cancro, mas o médico assegura que “não há fatores de risco” associados a profissões ou práticas desportivas, a não ser “o recurso a tratamentos hormonais”. De resto, há fatores de risco definidos como o testículo que não desceu para dentro do escroto (criptorquidia); a história de cancro do outro testículo; os antecedentes familiares; a história de hipospadias; e diminuição da espermatogénese e infertilidade.

(Foto: Bilderzwerg/AdobeStock com alterações)

Entre os desportistas visados, conta-se Ricardo Nunes, guarda-redes do Varzim de 40 anos. Em agosto de 2019, uma inflamação da próstata deixou de responder à medicação, três meses depois do urologista não lhe ter notado nada. Foi a ecografia que apontou para o tumor maligno num testículo. Por estar “numa fase muito embrionária”, ficou pela cirurgia e colocou uma prótese, por sugestão médica, no IPO do Porto, onde continua a ser acompanhado de seis em seis meses.

Pai de um menino – a quem vai instruir no sentido do autoexame – e de uma menina, o futebolista não acautelou qualquer reserva de esperma porque não tem vontade de aumentar a família.

Ricardo assumiu publicamente a doença oncológica “para chegar a outros homens, como exemplo de superação”. “Estive dois ou três meses fora da competição e depois voltei aos relvados. E levo a minha vida normalmente, sem qualquer restrição”, destaca, valorizando o apoio incondicional da mulher.

Perante a incidência, o cancro do testículo já deixou de ser tabu no desporto. Este ano, só na Bundesliga, foram quatro casos detetados: Jean-Paul Boetius (o mais recente) e Marco Richter, ambos do Hertha Berlin; Timo Baumgartl, do Union Berlin; e Sébastian Haller, do Borussia Dortmund. Mesmo não sendo obrigatório, o Union Berlin aposta nos exames aos seus atletas, vozes ativas em prol da consciencialização de doenças tipicamente masculinas.

Ajuda psicológica sem estigma

Nos centros de referência, o tratamento e acompanhamento são multidisciplinares e as especialidades articulam-se desde a urologia, a oncologia, a radioterapia, a enfermagem, até à psicologia, colocando várias valências à disposição do paciente.

Psicóloga clínica, Susana Samico recebe, no Centro Hospitalar São João, pacientes que procuram ajuda, embora note que “ainda existe algum preconceito”. “Como é um cancro numa zona privada, num órgão genital, é muito complicado e há muito estigma. Mexe muito com a masculinidade e há bastante medo em dizer o local do cancro. Também há muito receio do que aí vem em relação ao desempenho sexual, de como o outro o vai ver, como é que aquilo vai alterar na imagem corporal e como vai funcionar”, justifica.

Mesmo com uma prevalência baixa, o facto de atingir jovens que, muitas vezes, ainda nem iniciaram a vida sexual, cria inseguranças, o que, a par da alopecia provocada pelos tratamentos, baixa a autoestima. “Tudo isto tem de ser trabalhado, porque depois é sofrer no vazio, pois a vergonha e o não saber como lidar provoca angústia, incerteza. Nessa altura, é importante o trabalho do corpo clínico que o acompanha”, realça Susana Samico. Esclarece que “o encaminhamento faz parte sempre que eles queiram. É disponibilizado, mas não se impõe. Senão seria contraproducente. Vai-se sempre abrindo a porta e a pessoa entra quando quiser, até pode ser depois de todos os tratamentos”.

Para a doutoranda em Sexualidade Humana, o facto de figuras públicas “falarem sobre o cancro e a importância da apalpação do testículo ajuda sempre a normalizar e a fazer com que os outros homens percam a vergonha”. A mesma vergonha que fez o cantor Marco Paulo esconder que o primeiro problema oncológico que teve foi no testículo direito, em 1996, e não no cólon ou no abdómen como o próprio chegou a dizer. A verdade só chegou agora pela sua boca, quando lida com um novo cancro, desta vez nos pulmões, para que os homens não se preocupem só com a próstata.

Resposta rápida em tempo útil

Apesar de ser uma jornada difícil após o diagnóstico, o médico Rui Almeida Pinto assegura que os números são otimistas. Mesmo em doentes com cancro do testículo, metastização retroperitoneal e até pulmonar. A taxa de recuperação é alta e os testemunhos assim o atestam. Desvalorizar sinais como um nódulo duro e palpável no testículo atrasa o diagnóstico e, segundo o clínico, há pacientes – muitos deles “miúdos novos” – que chegam ao gabinete apenas “quando o nódulo cresce durante um ou dois anos e tem um tamanho de 4/5 centímetros”.

“Deve haver muito mais sensibilização, mais campanhas televisivas de autorrastreio, porque estamos a falar do segundo cancro mais frequente nos homens entre os 15 e os 35 anos”, assegura Rui Almeida Pinto, urologista
(Foto: DR)

Os nódulos são o principal sintoma, mas não são o único e “os cancros do testículo podem aparecer num contexto de infeção ou apresentar, por vezes, um líquido, o chamado hidrocelo, à volta do testículo, ou ainda uma sensação de anestesia ou aumento da dor à volta do testículo”, destrinça o profissional. Destacando a necessidade de “haver muito mais sensibilização, mais campanhas televisivas de autorrastreio, porque estamos a falar do segundo cancro mais frequente nos homens entre os 15 e os 35 anos”. Chegar tarde às mãos da medicina significa que já soma metástases. Neste momento, os tumores de bom prognóstico, de acordo com Rui Almeida Pinto, têm uma taxa de sobrevivência superior a 90-95% aos 5 anos. A mortalidade é baixa, mas é primordial prevenir.

Qualquer indivíduo que note algo estranho, pode dirigir-se imediatamente “à urgência de um dos cinco centros de referência em Portugal, ou contactar o serviço ou enviar um email para o hospital a pedir uma referenciação e terá consulta na semana seguinte, ou através da abordagem do médico de família”, aconselha Rui Almeida Pinto. “A resposta é muito rápida”, garante.

Centros de Referência

Na área de oncologia de adultos, especificamente preparados para o tratamento do cancro do testículo, há vários centros de referência no país:

  • Centro Hospitalar de São João, E. P. E., no Porto
  • Instituto Português de Oncologia do Porto Francisco Gentil, E. P. E. em colaboração interinstitucional com o Centro Hospitalar do Porto, E. P. E.
  • Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, E. P. E.
  • Instituto Português de Oncologia de Lisboa, Francisco Gentil, E. P. E