Campeões do mundo de andebol (as cadeiras de rodas são um parêntese)

Têm histórias brutais, arrebatadoras, inspiradoras. Mas não querem ser definidos por elas. Recusam ser coitadinhos ou heróis, não querem discriminações positivas nem narrativas reduzidas à superação. E, no entanto, nada teria sido possível sem ela. Tiago Cantigas, Ricardo Queirós, Tina Relvas e Nuno Nogueira são rostos de uma seleção que acaba de entrar na história do desporto português.

Há uma cena icónica na reta final de “Bohemian Rhapsody”, filme biográfico dos Queen e de Freddie Mercury, que ilustra o momento em que a banda britânica fecha a atuação no inesquecível Live Aid de 1985, num Estádio de Wembley (Inglaterra) a abarrotar. Freddie senta-se ao piano, olha a plateia, recebe uma ovação monumental, faz soar as primeiras notas. E então arranca, poderoso como só ele. “I’ve paid my dues [eu paguei as minhas dívidas], time after time [uma e outra vez], I’ve done my sentence [eu tive a minha sentença], but comitted no crime [mas não cometi nenhum crime].” E nisto, o público junta-se também, 70 mil pessoas em êxtase, um uníssono que arrepia, um crescendo dramático e apoteótico. Tiago Cantigas, 32 anos, natural de Silves e militar da GNR, tem estas imagens minuciosamente gravadas. Porque aquele foi o momento em que mudou “o chip”, em que berrou a revolta, em que fez a catarse de meses a fio cingido a um hospital e de uma vida irremediavelmente diferente. “Na altura em que vi o filme estava internado no Hospital de Portimão. E foi um momento que me marcou, aquela parte da letra em particular. Chorei, gritei, eu sei lá. Já tinha chorado antes, mas ali foi diferente. Foi um libertar de tudo. E daquele dia para a frente passei a focar-me mais no lado positivo.”

Para trás, ficava um violento acidente de mota de que não guarda memórias. Sabe apenas que foi em março de 2019, que se despistou sozinho, que foi projetado, que uma lesão grave na cervical o deixou tetraplégico (embora mexa os dois braços), que passou uma semana em coma induzido e um mês nos cuidados intensivos. “As únicas recordações que tenho são de receber uma espécie de mensagem do meu subconsciente a dizer-me para ter mais cuidado, para me agarrar aos momentos. Não sei se foram sonhos ou outra coisa qualquer. Mas tenho essa memória muito presente. E fez sentido na altura.” Seguiram-se seis meses de internamento hospitalar, entre Faro e Portimão, outros seis no Centro de Reabilitação de São Brás de Alportel, com muitas saudades à mistura. “O que mais me custou foi estar longe do meu filho [hoje com sete anos], sobretudo falhar o aniversário dele.” Desistir, contudo, nunca lhe pareceu opção. “Aquela revolta inicial é difícil de ultrapassar, a aceitação demora. Mas isso nunca me impediu de nada.”

Tiago resiste a mergulhar mais fundo nos dias de angústia. Pede que não nos foquemos nas dificuldades por que passou, recusa discriminações positivas, muito menos quer ser visto como um herói. E frisa que o que ficou para trás não é o que mais importa. Importante, diz, é que aprendeu a tirar partido de um corpo transfigurado, a trabalhar as estratégias necessárias para enfrentar o dia a dia, a sentir-se bem na nova pele. Mesmo que o momento da alta que tanto quis tenha coincidido com o início da pandemia de covid-19 e a saga dos confinamentos. “Foi um bocado morrer na praia”, admite, com fair-play. “A parte boa foi ter tido muito tempo para matar saudades do meu filho.” E o andebol? Bom, o andebol não o seduziu logo, ele até andou meses a dar para trás, embeiçado com a canoagem. “Pratiquei durante muitos antes e tive sempre a ideia de que, a voltar a fazer desporto, seria esse.” Até que, no final de 2020, após muita insistência, lá decidiu ir experimentar um treino no São Bartolomeu de Messines. “E na semana seguinte já estava a fazer testes médicos.” Correu tão bem que um ano depois foi chamado à seleção nacional de andebol em cadeira de rodas. “É uma sensação de orgulho indescritível. Mas também de responsabilidade e respeito.”

Tiago Cantigas teve um acidente de mota em março de 2019 e ficou tetraplégico. Mas há muito que mudou “o chip” e passou a ver o copo meio cheio
(Foto: Carlos Vidigal Jr./Global Imagens)

Um orgulho que se fez ainda maior quando, a 20 de novembro, ajudou a seleção a conquistar a edição inaugural do Campeonato do Mundo e da Europa da modalidade, assim designado por envolver tanto a EHF (Federação Europeia de Andebol) como a IHF (Federação Internacional de Andebol). O título chegou com uma vitória por 18-10 frente aos Países Baixos, num pavilhão de Leiria a rebentar pelas costuras. Tiago ainda parece andar à procura de palavras que façam jus àquele momento. “É a derradeira experiência, não há nada maior que isto. É um patamar que é difícil conceber, descrever, uma sensação que demora a encaixar. Tem um sabor especial e mostra-nos que é possível, que dentro das coisas más há sempre coisas boas.”

Ricardo, o rebelde

Para Ricardo Queirós, 31 anos, portuense orgulhoso, a vida tem sido sobretudo isso: fazer tábua rasa dos contratempos, aproveitar tudo, desfrutar sempre. Ao ponto de ter passado anos a jogar futebol de canadianas. “É verdade que parti a perna duas vezes por andar armado em fino e pensar que era jogador da bola”, diz com graça. Para se perceber, temos de recuar uma imensidão de anos, quase 30, na verdade. Ricardo era um garoto de quatro anos, ia com os pais ao café, um carro desgovernado galgou o passeio e esmagou-o contra a parede. Ele tem apenas uma vaga ideia de tudo aquilo, muito do que sabe hoje é o que lhe foi sendo contado pelos pais ao longo dos anos. Que passou três semanas em coma induzido. Que, durante essas três semanas, vertia uma lágrima de cada vez que o pai lhe falava. Que o cenário mais provável chegou a ser a amputação de ambas as pernas, mas que um “médico espetacular” e um sem-fim de cirurgias – não sabe quantas, mas terão sido seguramente mais de 50, uma parte delas no estrangeiro – conseguiram salvá-las. Que esteve dois anos internado.

“Comecei numa cama de hospital e hoje sou completamente autónomo”, sublinha, com uma pontinha de orgulho. Sem ter passado sequer por um centro de reabilitação. E sem ter feito grandes sessões de fisioterapia. “É verdade que os enfermeiros no hospital me foram ajudando a retomar a marcha, mas depois foi muito trabalho meu, sozinho e com a ajuda da minha família. Ou com as canadianas, ou agarrando-me aos móveis lá de casa, fui sempre tentando andar. E como era pequeno arriscava-me a tudo, nessa altura não temos noção do perigo, não é? Se calhar acabou por ser a melhor fisioterapia que eu podia ter.” Mesmo que pelo meio tenha tido outros percalços. Estes por culpa própria, diga-se. A tal história do futebol de canadianas. “O futebol foi sempre a minha paixão. Então nunca deixei de jogar, na rua, com os meus amigos, mesmo de canadianas e com a proibição do meu médico. Até com ferros na perna cheguei a jogar.”

Aos quatro anos, Ricardo Queirós foi esmagado contra a parede, por um automobilista desgovernado que galgou o passeio. Mas hoje é totalmente autónomo. E até de canadianas jogava futebol
(Foto: Artur Machado/Global Imagens)

Depois, ali por volta dos dez anos, entrou para o desporto adaptado, no F. C. Porto. “Aquilo era uma espécie de uma aula de Educação Física, também me ajudou muito. Acho que se pode dizer que foi a minha segunda fisioterapia”, brinca. Ajudou tanto que com 14 anos, mais coisa menos coisa, largou de vez as canadianas. Mas nunca o futebol com os amigos. “Claro que [as sequelas do acidente] interferem, sinto mais dor e mais cansaço do que os outros e isso condiciona-me. Mas acho que jogo melhor do que uma série de gente que não tem limitações”, arrisca, sempre com sentido de humor. Pelo meio, foi praticando outros desportos, alguns cruzam-se no tempo, chegou até a representar dois clubes em simultâneo, em modalidades distintas. Fez natação, jogou futebol adaptado, primeiro no F. C. Porto (no tempo em que o clube teve uma equipa para atletas com paralisia cerebral), depois no Valadares, tentou o basquetebol em cadeira de rodas na delegação portuense da Associação Portuguesa de Deficientes (APD), mas não se convenceu, só depois veio o andebol. “E aí foi diferente. Achei tudo muito mais fluido, gostei mais.” E aquela paixão tímida fez-se coisa séria.

Tanto que integra a seleção nacional de andebol em cadeira de rodas desde 2018, que logo nesse ano foi considerado o melhor jogador do Campeonato da Europa, que no ano seguinte foi nomeado para a equipa ideal, que este ano, em Leiria, fez, ao todo, 37 golos, consagrando-se como o melhor marcador da prova. “Naquele momento, em que me caiu a ficha e pensei ‘sou campeão do Mundo, que coisa linda’, emocionei-me, pensei muito no meu pai [faleceu há dois anos], sempre quis ganhar um título para lho dedicar, é por causa dele que quando marco festejo a apontar para o céu.” Foi também um sonho antigo a ganhar vida por caminhos travessos. “Isto tem sido aquilo que eu sempre quis. Desde pequeno, sempre tive o sonho de ser jogador de futebol profissional, mesmo sabendo que com as minhas limitações não iria conseguir. Isto tem sido o cumprir de um pedacinho do meu sonho.” E até já pensa no próximo capítulo: “Que a modalidade se torne paralímpica e que possa ir a uns Jogos Paralímpicos”.

A meta, ambiciosa, serve de pretexto a uma viagem breve à génese do andebol em cadeira de rodas. Oficialmente nascida no Brasil, em 2005 – mesmo que Danilo Ferreira, selecionador da equipa das quinas, garanta que já se tinha praticado esporadicamente em Portugal -, a modalidade tem vindo a ganhar expressão nos últimos anos. A realidade portuguesa, em que há já um campeonato nacional com 12 equipas, uma Taça de Portugal, uma Supertaça, um total aproximado de 150 atletas federados, é um bom exemplo disso. E a quem se destina o andebol em cadeira de rodas? A todos os que tenham as funções motoras comprometidas ao nível dos membros inferiores. Seja o comprometimento fruto de lesão medular, amputação ou disfunções várias que impeçam os atletas de correr e saltar normalmente. As regras são muito semelhantes, mas jogam seis contra seis (pelo menos a nível europeu). E é obrigatório ter uma mulher em campo e três na equipa.

Tina, a sobrevivente

Albertina Relvas, 43 anos, natural de Pombal, é uma das mulheres que ajudaram a tornar real o sonho de fazer da seleção portuguesa de andebol em cadeira de rodas campeã mundial. “Foi um trabalho duro, com muito suor e muitas lágrimas, mas a sensação no final foi indescritível”, resume Tina, como todos lhe chamam. “Cantar o hino é assim uma coisa arrepiante, e depois jogar perante todo aquele público, num pavilhão repleto, foi algo ímpar, que jamais sonhei viver. É algo que me vai ficar na memória para sempre.” Mas há muito que o andebol lhe serve de abrigo, de escape, de tábua de salvação. “O desporto para mim é algo único, porque quando estou nos treinos, nos jogos, em competição, estou focada naquilo, não penso em mais nada. Tem-me ajudado imenso, até por tudo o que eu perdi.” E pelos fantasmas que nunca a largaram. Tina não doura a pílula. “A dor fará inevitavelmente parte da minha trajetória de vida”, atira, contundente.

Tina Relvas sobreviveu a um acidente de mota que lhe levou o namorado e a deixou com uma prótese e um sem-fim de mazelas físicas e psicológicas. Admite que a dor nunca passou, mas o desporto (e não só) reensinou-a a viver
(Foto: Nuno Brites/Global Imagens)

A conversa atira-nos para o verão de 2014, quando Tina seguia com o namorado de mota, depois de um dia de praia, ainda hoje jura que não há nada que se compare àquela sensação de liberdade de seguir a bordo de uma mota. Mas naquele dia o prazer infinito das duas rodas foi-lhes levado num rompante por um automobilista que se atravessou no caminho e os levou pelos ares. Tina não guarda imagens daquele dia, mas reteve os sons. Ainda recorda a confusão, o burburinho, os bombeiros a chegar. Ainda se lembra que a preocupação dela foi sempre o namorado, saber onde estava, como estava, já eram 14 anos juntos, um amor sem igual, pode jurar. Mas as boas notícias nunca chegaram. Bruno, na altura com 31 anos, não resistiu ao acidente. “Mas eu só soube disso uns 15 dias depois. Como o meu estado de saúde era muito grave, optaram por não me contar logo.” Tina esteve em coma induzido, ficou com uma perna desfeita, entrou em septicemia, teve de ser amputada, foi submetida a várias cirurgias, ainda hoje tem lesões graves na mão direita. “Mas teve de ser a minha mãe a assinar a declaração de consentimento, eu não quis, só dizia para me deixarem morrer.”

Sair daquele lugar foi um caminho longo, interminável, dois meses hospitalizada, mais um numa unidade de serviços continuados e um ano no centro de reabilitação, um processo de adaptação penoso, sob múltiplas formas. “Quando saí, já saí com a minha prótese, já era minimamente autónoma. Mas numa fase inicial é difícil. E depois, quando estamos no centro de reabilitação, acaba por ser mais fácil porque somos todos iguais, porque tudo está adaptado para nós. Cá fora é muito mais complicado.” A ela, que sempre cuidou da imagem, que sempre foi vaidosa, custou-lhe ainda mais. “Eu sempre gostei de andar de calções, de saias, e não queria abdicar disso. Mas com a prótese as pessoas olham de maneira diferente, fazem comentários. Sofri muito com isso.” Mas acabou a dar a volta ao texto. À custa do apoio da família e dos amigos. De acompanhamento psicológico. De incontáveis doses de coragem. E do andebol. “Fez-me crescer muito e abriu-me novos horizontes. Até porque também valorizo muito a ligação e o afeto que fui criando com meus colegas.” Como se de uma família se tratasse. E não, não é só um cliché.

Nuno, o benjamim

Nuno Nogueira, 15 anos, natural de Porto de Mós (Leiria), guarda-redes, bem o pode dizer. E não, não há gralha na idade. Por se tratar de uma modalidade relativamente recente, ainda não há escalões na seleção. E, portanto, Nuno, 15 anos, compete lado a lado com Tiago (32), com Ricardo (31), com Tina (43), com tantos outros. “Há sempre aquelas piadinhas por eu ser mais novo, brincam comigo, mas eu gosto e participo.” Nuno nasceu com espinha bífida, sem as últimas três vértebras e meia, não sente as pernas do joelho para baixo. Quando era mais pequeno chegou a usar uns aparelhos até ao joelho, mas tinha feridas constantes e teve de os deixar. Depois passou para as talas. Mas o filme repetiu-se. E perto dos seis, sete anos, não teve alternativa que não fosse passar para a cadeira de rodas. Mas a cadeira não lhe levou a paixão maior.

Nuno Nogueira, 15 anos, é o mais jovem atleta da seleção nacional de andebol em cadeira de rodas. Nasceu com espinha bífida e sem três vértebras e meia. Nunca sentiu as pernas do joelho para baixo, mas sempre foi “viciado” em desporto
(Foto: Nuno Brites/Global Imagens)

“Sou viciado em desporto, sempre fui. Desde pequeno que vejo quase tudo: futebol, futsal, hóquei, andebol. E sempre arranjei forma de praticar.” Na altura em que usava as talas, chegou até a jogar futsal. Depois, fez natação. Atualmente, joga basquete e andebol. “Com dez anos, fui ver um jogo [de andebol em cadeira de rodas] da APD Leiria, depois fui a um treino e nunca mais parei.” Aliás, também já foi chamado à seleção de basquetebol, mas no escalão sub-22. Já a primeira chamada à seleção de andebol é recente, estreou-se em setembro e passados dois meses já estava a ser campeão do Mundo e da Europa, uma façanha que ainda lhe custa a processar. “Fiquei surpreendido, não estava à espera de ser chamado já.” Muito menos esperava ser campeão do Mundo. “Sinceramente acho que ainda não me caiu totalmente a ficha. Representar Portugal é um orgulho, mas também uma grande responsabilidade.”

Os campeões do Mundo e da Europa de andebol em cadeira de rodas. Da esquerda para a direita: Pedro Marques, Euclides Soares, Rodrigo Vieira, Tiago Cantigas, Adriano Mendes, Diana Machado, Filipe Cerqueira, Ricardo Queirós, João Jerónimo (capitão), Tina Relvas, Nuno Nogueira, Iderlindo Gomes, João Pedro, Rui Rodrigues
(Foto: Federação de Andebol de Portugal)

Por isso, reconhece que, durante a competição, sentiu sempre um friozinho na barriga, que estava nervoso, que agradeceu até por não ter jogado mais tempo. Mas está ciente do seu ponto forte, sabe que nunca desiste de uma bola, que faz os possíveis e os impossíveis para ela não entrar. Como promete fazer tudo para agarrar o futuro com que sonha. “Quero tentar ser jogador de basquetebol ou de andebol profissional. Em Espanha já há ligas profissionais de basquetebol em cadeira de rodas, por exemplo.” E, por momentos, voltamos àquela cena icónica do “Bohemian Rhapsody”, em que Freddie Mercury canta assim: “I’ve had my share of sand kicked in my face [já me atiraram areia suficiente para a cara], But I’ve come through [mas eu dei a volta], And we mean to go on and on and on and on [e queremos continuar e continuar], We are the champions, my friends [nós somos os campeões, meus amigos], And we’ll keep on fighting till the end [e vamos continuar a lutar até ao fim]”.