Além da companhia e do afeto, quando treinados, os cães podem ter outras funções muito úteis. Apoiam na doença, alertando os cuidadores antes das crises, facilitam processos terapêuticos e estimulam a aprendizagem. Mas antes é preciso treino.
Há noites em que Renato Loureiro, de 47 anos, está sentado no sofá a ver televisão e o Link se aproxima, pousa a cabeça em cima do seu joelho e começa a ganir baixinho. Sempre que o cão dá este sinal, ele levanta-se, vai até à cama de Lucas, de 10 anos, e confirma o que já sabe: o filho mais novo, que tem diabetes tipo 1 desde os seis anos, está a entrar em hipoglicemia. O Link chegou em outubro de 2019 e é, garante Renato, “um animal fora de série”. É um amigo e uma companhia, como a maioria dos cães, além disso, é um cão de alerta médico, treinado pela Associação Pata D’Açúcar e consegue detetar hipoglicemias em pessoas que, como Renato e Lucas, têm diabetes tipo 1.
Desde 2016, quando foi criada, a Pata D’Açúcar, sediada no Seixal, já entregou 18 destes cães de alerta médico e está a treinar mais três que serão entregues no início do próximo ano. Os cães são selecionados em abrigos para animais abandonados, explica Nuno Benedito, presidente da associação. “Recorremos a animais de qualquer raça ou mesmo de raça indefinida, que superem 12 testes de seleção que aplicamos (…) e uma inspeção veterinária exaustiva” Depois são então entregues às famílias beneficiárias e iniciam um treino de cerca de 12 meses a cargo da associação, gratuito para os tutores.
O trabalho assenta numa ligação forte entre o tutor e o seu cão. “Esta ligação é desenvolvida através de dinâmicas positivas, onde se insere uma estimulação e canalização olfativa para o odor característico do tutor quando a sua glicemia atinge determinados valores. Para o efeito são desenvolvidos jogos que elevam o interesse do cão e através dos quais o ensinamos que determinado odor lhe dá acesso a compensações elevadas”, esclarece Nuno Benedito. No fim do treino, os animais estão preparados para sinalizar níveis de açúcar no sangue geralmente abaixo de 90 mg/dl, de forma a que os donos tenham tempo de agir antes da crise de hipoglicemia, que acontece quando os valores descem dos 70 ml/dl.
“O Link teve um impacto muito grande na nossa vida. Vivíamos em terror porque uma hipoglicemia noturna é muito perigosa. Como o Lucas tinha apenas 6 anos quando lhe foi diagnosticada a doença, eu e a minha mulher levantávamo-nos quase de hora a hora para lhe ir picar o dedo ou ver como estava”, conta Renato Loureiro. Agora não precisam de o vigiar da mesma forma. “Por norma, vamos ver o Lucas pela meia-noite, antes de ir para a cama, e dormimos descansados até de manhã.” O Link vigia-o e, se necessário, vai chamá-los.
Uma relação que ensina
Também a Ânimas – Associação Portuguesa para a Intervenção com Animais de Ajuda Social, treina cães de assistência, para pessoas com doenças neuromusculares, surdez, epilepsia, diabetes, entre outras. Além disso, usa ainda animais para fazer intervenções pedagógicas, terapêuticas ou lúdicas em sítios tão diversos como escolas – tanto com os alunos do ensino regular, como com crianças com necessidades educativas especiais -, hospitais psiquiátricos e em instituições de acolhimento de crianças em risco.
“O cão, por si só, não é um terapeuta, como por vezes se ouve dizer”, salienta Liliana Carril, psicóloga e coordenadora de programas de intervenção assistida da Ânimas. “É um instrumento ou um recurso, entre outros que utilizamos, que facilita a intervenção dos técnicos, sejam terapeutas ou professores”, conclui. O papel do animal é o de motivador, de ‘quebra-gelo’ e de desbloqueador de emoções positivas.
Cada programa tem objetivos específicos, dependendo da intervenção e do público-alvo, e podem ser feitos com ou sem o cão. Mas há uma diferença na presença do animal. “Nas escolas, por exemplo, faço treino de leitura com e sem o animal e noto que os objetivos são atingidos mais facilmente quando ele está presente: a criança sente-se mais segura e menos observada. O cão não a julga, não lhe diz que está a ler mal”, justifica.
Em março, a Ânimas começou um novo projeto, inovador, em parceria com a Associação CAIS, no Porto, para intervir junto da população sem-abrigo. “O que estamos a notar é que há uma adesão muito maior a esta atividade do que a outras que propomos, de tal forma que é das poucas que fazemos com uma periodicidade semanal”, revela Fátima Lopes, assistente social da CAIS.
Isto, por si só, é um grande sinal, já que a presença dos utentes nas atividades que lhes são propostas é um dos problemas com que se confrontam. “As pessoas com quem trabalhamos, maioritariamente, vivem de forma isolada, sem retaguarda social ou familiar, com problemas de autoestima e muitas, com imensa ansiedade. Aqui, encontram um momento de descontração, de convívio, de partilha de histórias a partir dos animais. É muito importante tanto no combate ao isolamento, como à ansiedade”, diz a técnica.
Uma das duplas que todas as quintas-feiras, às 11 horas, promove esta atividade na CAIS é a psicóloga Catarina Cascais, vice-presidente da Ânimas, e a sua cadela Ervilha. “Todas as sessões são planeadas de forma a trabalhar os afetos e as emoções positivas, como a empatia e a compaixão, através dos cães. A ideia é ajudar as pessoas a conectarem-se com o contexto, com os outros e com elas próprias”, assinala a psicóloga.
O efeito positivo imediato que a relação com o animal causa no bem-estar é importante, mas o propósito da intervenção vai além disso: a ideia é que a experiência positiva ali vivida, com os animais e com os técnicos, possa depois ser generalizada a outras relações e facilite outras intervenções. “As emoções positivas desempenham um papel muito importante nos processos terapêuticos porque é essa vivência que promove novos comportamentos, novos recursos pessoais e novas competências sociais”, defende Catarina Cascais.
Os cães ajudam a criar uma relação e uma confiança que, mais tarde, vai ajudar os utentes a aceitarem outras intervenções que lhes vão dar mais competências para se adaptarem à vida produtiva. O que ensaiam com os cães conseguem, depois, pôr em prática com os humanos.