Brasil, uma nação ainda mais dividida e extremada

Os brasileiros deixaram para a segunda volta a escolha de quem será o próximo presidente. E acentuaram um clima de divisão que testa como nunca a democracia do Brasil. Uma nação que parece não encaixar em si própria e coloca frente a frente dois lados de uma sociedade com visões díspares nos seus extremos.

Domingo, 2 de outubro, 17 horas, horário de Brasília, a capital federal do Brasil desde 1960, cidade construída do nada no interior vermelho e denso do enorme Planalto Central por imaginação maior do arquiteto Oscar Niemeyer (1907-2017). Fecham as urnas e começam a ser conhecidos os primeiros resultados das eleições presidenciais. Graças ao sistema de voto eletrónico, a contagem faz-se rápida e eficaz, num país-continente – o quinto maior do Mundo – com 27 estados e 156 milhões de votantes. Jair Bolsonaro aparece desde logo na frente, mais de 40%, por vezes a tocar os 50%, com Lula da Silva atrás, dificilmente a passar dos 45%. À medida que as horas avançam e os resultados se tornam completos, a tendência inverte-se. Mas pouco. Lula, que durante a campanha eleitoral surgiu destacado em todas as sondagens com uma vantagem de cerca de dez pontos percentuais em relação ao presidente em exercício e cuja eleição à primeira volta chegou a ser equacionada, consegue a dianteira, sempre seguido de perto pelo principal rival, o mesmo que o apelidou de presidiário durante um debate televisivo. Contas finais, Lula da Silva acaba a primeira volta com 48,43%, Jair Bolsonaro com 43,20%. O Brasil está oficialmente partido em dois e atirado para uma segunda volta que vem longe no calendário, apenas a 30 de outubro. E que promete acentuar as clivagens políticas entre os apoiantes dos dois lados da barricada durante as quatro semanas de campanha eleitoral até lá.

“É um país numa encruzilhada, há bastante tempo que o clima político se vem intensificando de um lado e do outro. As divisões acentuaram-se até a um extremo que chegou agora ao ponto máximo de intensidade e crispação”, descreve Elísio Estanque, sociólogo e investigador do Centro de Estudos Sociais, com passagem por várias universidades do Brasil, como a USP-São Paulo ou a Unicamp. “Estão frente a frente dois lados com visões diferentes do que é e do que deve ser a sociedade. Dois lados muito vincados, agressivos, por vezes. O tom entre os apoiantes, sobretudo os de Bolsonaro, é tão intenso que as discussões lembram as que aconteciam em Portugal durante o PREC”, aponta.

Um Brasil que parece esticar ao limite as cordas da democracia. Como se tentasse perceber até onde vai a própria liberdade, essa liberdade jovem na História, nem quatro décadas completou ainda, e que é agora colocada à prova como nunca desde que foi devolvida ao povo. “Nem mesmo nas primeiras eleições diretas após o final da ditadura, que opuseram Collor de Mello a Lula da Silva em 1989, o clima político no Brasil foi tão tenso e violento como o que agora se está a viver”, acredita o professor brasileiro Miguel Borba de Sá, doutorado em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e docente na Universidade de Coimbra. “A força do enraizamento da Direita radical, que transcende a figura de Bolsonaro, está decalcada em valores conservadores e em instituições que vão de igrejas evangélicas a grupos paramilitares que controlam certos territórios. Por outro lado, Lula e o PT têm uma aceitação grande junto das massas desfavorecidas e das forças sindicais, embora a Esquerda, sobretudo a mais radical, tenha praticamente desaparecido ao longo dos últimos anos.”

Uma divisão tão acentuada que torna complicado qualquer prognóstico sobre quem será o vencedor da segunda volta. Uma coisa é certa, nunca um presidente em funções falhou a reeleição desde as primeiras eleições livres e diretas após o fim da ditadura militar (1964-1985). Em 1998, Fernando Henrique Cardoso ganhou facilmente à primeira volta, em 2006 Lula da Silva precisou de segundo turno para derrotar José Alckmin (seu atual companheiro de chapa como candidato a vice-presidente) e em 2014 Dilma Rousseff bateu Aécio Neves também após duas idas às urnas. Mais ainda, nenhum chefe de Estado foi o menos votado na primeira volta, Bolsonaro estreou agora tal dado histórico.

Mas tudo isto vale o que vale num Brasil que experimenta tempos novos, diferentes e, até, perigosos. “A polarização em democracia não é, em si mesma, um problema. O grave é quando a hostilidade entre os dois lados da barricada é forte, tal como sucede atualmente”, entende Miguel Borba de Sá. “A clivagem existe e é evidente, muitas vezes agressiva. O Brasil vive uma época complexa”, sustenta, por sua vez, Elísio Estanque.

O lado infinito das incógnitas

A segunda volta será, assim, uma espécie de ensaio sociológico do Brasil de 2022. Sem vencedor antecipado, com imensa incerteza no ar, com receios de que a longa campanha eleitoral venha a dividir ainda mais um país fraturado e com cicatrizes frescas à vista. “Sem dúvida alguma que Jair Bolsonaro ganhou um balão de oxigénio com o resultado da primeira volta, superior ao que previam as sondagens. E que pode aproveitar-se disso para embalar para a vitória. Mas Lula da Silva continua na dianteira. É verdade que por apenas seis milhões de votos, o que num país com mais de 150 milhões de eleitores é escasso, mas na frente”, lê Miguel Borba de Sá.

Já para Elísio Estanque, as sondagens e estudos de opinião, apesar de criticadas pelas suas falhas, continuam a indicar sinais que podem influenciar o resultado da eleição. “A tendência para a estabilidade de voto é uma evidência. E há outros fatores que podem influenciar, como as atitudes de rejeição dos eleitores em relação aos candidatos, que são altas para ambos, e a posição e indicação de voto de Simone Tebet e Ciro Gomes, o terceiro e quarto candidatos mais votados a 2 de outubro”, considera.

Simone Tebet, apoiada pelo MDB, herdeiro do PMDB, surpreendeu ao conseguir superar Ciro Gomes, do PDT: 4,16% contra 3,04%. Ciro, que em 2018 permaneceu neutro e na segunda volta não declarou apoio nem a Jair Bolsonaro nem a Fernando Haddad, candidato do PT, desta vez surgiu rapidamente a apelar ao voto em Lula. Tebet fez o mesmo, embora apenas a nível pessoal, com o seu partido a optar por uma posição neutra. “O MDB tem muito apelo no Brasil profundo e o apoio de Tebet a Lula poderá servir de fiel da balança. O caso de Ciro Gomes é mais complexo, porque muitos dos seus possíveis eleitores terão votado útil em Lula logo na primeira volta e esvaziado o voto, portanto os ganhos não serão muitos”, explica Miguel Borba de Sá. “De qualquer forma, é preciso perceber que a influência de Simone Tebet e de Ciro Gomes dentro dos próprios partidos é limitada e que é perfeitamente possível que os eleitores contrariem a sugestão de voto que lhes foi dada, muito embora os apoiantes de ambos tenham cultura democrática e sejam, à partida, pró-Lula”, continua.

Confusões, decisões e indefinições

A chave da vitória poderá estar nos três estados mais populosos do Brasil, logo com mais eleitores, 63,6 milhões no total: São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Uma leitura aos resultados da primeira volta permite perceber que, novamente, os sinais de divisão do eleitorado foram explícitos. Em São Paulo, venceu Bolsonaro com 47,71%, contra 40,89% de Lula. O candidato do PT, por seu lado, ganhou Minas Gerais (48,49% para 43,60%) e Bolsonaro conquistou o Rio de Janeiro com destaque (51,09% vs 40,68%). “Haverá, ainda, dois fatores a ter em conta. O nível de organização e de mobilização de ambos os candidatos, em particular do PT e de Lula, e o posicionamento dos grandes grupos económicos e de comunicação social, que até à primeira volta se mantiveram relativamente neutros, salvo algumas exceções”, destaca Miguel Borba de Sá.

Tudo somado, adivinhar por antecipação quem ocupará o Palácio do Planalto, residência oficial do presidente da República do Brasil, é um exercício arriscado tamanhas as equações em causa e as incertezas que pairam no ar. Mais arriscado ainda será prever como decorrerá o exercício do próximo chefe de Estado, depois de os brasileiros, que também foram às urnas para escolher os governadores e os deputados estaduais, e os deputados e senadores federais, terem feito opções que indicam um caminho claramente difuso.

Foram eleitos à primeira volta mais governadores do PT (três) do que dos partidos de Direita e centro-direita MDB, PP e União Brasil (dois cada) e Novo, PL, PSD, Republicanos (com apenas um cada). PSB e Solidariedade, de Esquerda, também elegeram ambos um governador.

No congresso federal, um dos lados saiu claramente vencedor. O PL, de Jair Bolsonaro elegeu mais deputados (99), seguido da coligação de Esquerda Brasil da Esperança (que integra PT, PCB e Partido Verde, com 80). Mas daí em diante sobressaíram União (59), PP (47), PSD e MDB (ambos 42), e Republicanos (41), todos de Direita. Somados os resultados definitivos, a Direita conseguiu 273 lugares e a Esquerda 138, numa câmara que terá… 23 partidos representados, sinal bem demonstrativo da complexidade eleitoral e legislativa que marca o sistema brasileiro.

Já para o Senado, o PL subiu de 8 para 13 lugares e o PT de 4 para 9, mesmo assim atrás do União (12) e do PSD e do MDB (10 cada). E, de novo, foi a Direita a ganhar terreno e maioria.

“Se Bolsonaro for eleito, terá ambas as câmaras do seu lado e não terá grandes problemas para governar. O caso será diferente caso o próximo presidente seja Lula, que enfrentará grandes dificuldades perante um Congresso e um Senado que lhe são contrários”, antevê Miguel Borba de Sá.

Portugal atento

O futuro político do Brasil é, também, acompanhado com atenção redobrada pela comunidade brasileira residente em Portugal, constituída por 211 mil imigrantes, segundo números deste ano do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). Destes, votaram 80 mil, demonstração de participação democrática que motivou filas de horas, sobretudo em Lisboa e no Porto, durante as quais foram públicas acirradas trocas de palavras entre apoiantes dos principais candidatos enquanto se esperava vez para chegar à urna. Lula da Silva saiu vencedor (61,55%) com Bolsonaro a ficar pelos 30,61%.

“Nada está decidido e Bolsonaro vai vencer a segunda volta”, acredita Ricardo Amaral, presidente da Associação Brasileira de Portugal, cujas palavras não desmentem o apoio ao atual chefe de Estado. “A Esquerda, que governou o país durante quase 40 anos, queria voltar a tomar o poder na marra. Mas os brasileiros não caem mais na conversa de sempre, não precisam de pão com mortadela para ter votos”, assinala. Por isso, crê, “o segundo turno é certo para Bolsonaro, porque a sociedade, ao contrário do que alguns querem fazer passar, não está dividida e confere-lhe grande base de apoio”.

Muito embora Ricardo Amaral considere que a polarização não faz parte do atual cenário político, reconhece que os dois lados estão claramente representados no eleitorado de um e de outro candidato. “Quem vota Lula são os pobres e os jovens que não pensam pela própria cabeça. Os que optam por Bolsonaro têm uma certa escolaridade e um ordenado que supera o salário mínimo”, observa.

Mais contida e apreensiva na análise, Ana Paula Costa, vice-presidente da Casa do Brasil em Lisboa, diz que a campanha em marcha rumo à decisão de dia 30 vai sublinhar as “profundas brechas” que o eleitorado brasileiro traçou anteriormente nas ruas e provou nas urnas no passado domingo”. Os extremos vão manifestar-se ainda mais. A polarização é perigosa e torna quase impossível o diálogo, ainda por cima tratando-se de dois grupos muito fechados nas ideias e claramente antagónicos”, realça. Sem querer tomar partido direto, a responsável solta que “um dos lados, o de Lula, defende valores democráticos, e o outro, o de Bolsonaro, tem um estilo e postura autoritários”. No fundo, “ambos os projetos defendem e referem posições claramente diferentes”, com os simpatizantes a apresentarem “sobretudo uma postura anti, ou seja, são anti-Lula e anti-Bolsonaro.”

Mais um sinal, dos inúmeros, de que o Brasil apresenta um cenário que a História diz ser inédito. Como se o tivessem partido ao meio e colocado frente a frente, dentes acirrados e sobrancelhas franzidas de raiva, dois lados políticos cujos apoiantes ensaiam um difícil teste para a sobrevivência da própria democracia. Fraturando-a, esquartejando-a e afastando-a da essência. Mas exercendo-a. Mesmo que no fio da navalha da sã convivência entre cidadãos livres.

Números

32 milhões de brasileiros não foram às urnas por opção na primeira volta das eleições e ficaram obrigados a pagar uma multa até 3,51 reais (0,67 euros).

2 presidentes eleitos desde o fim da ditadura militar acabaram por ser afastados por processos de impeachment e não cumpriram os mandatos até ao fim: Collor de Mello e Dilma Rousseff.

91 mulheres foram eleitas deputadas ao Congresso, número recorde na história da democracia brasileira.