Beber sem pensar, sofrer sem saber

Os consumos de bebidas alcoólicas em níveis como os registados em Portugal trazem consequências (Foto: Freepik)

O álcool é a principal causa de doenças do fígado. Numa sociedade que normaliza o consumo de bebidas alcoólicas, o impacto na saúde passa geralmente despercebido. Mesmo que os sintomas estejam lá, silenciosos.

Foi aos 45 anos que Pedro (nome fictício) descobriu que o álcool mudaria a sua vida para sempre. As análises de rotina já tinham acusado algumas vezes valores que pediam atenção, mas foi no início da pandemia que o caso ficou mais sério. Um inchaço na barriga levou-o ao médico, que pediu mais exames e detetou um problema, reencaminhando-o para o hospital. Diagnóstico: cirrose. Nunca mais tocou em álcool e a sua rotina inclui agora três medicamentos por dia e visitas semanais ao médico, para seguimento e “retirar líquido” que fica acumulado pelo mau funcionamento hepático – um tratamento chamado paracentese.

Sabe que podia ter tido mais cuidado, mas não considera que se tenha “portado assim tão mal”. “Eram dois ou três copos por dia, nada mais”, justifica-se. A dificuldade de aceitação é semelhante a tantos outros portugueses, mesmo após o diagnóstico. O álcool está enraizado na sociedade mediterrânica, onde a cultura vinícola é forte, mas não pode ser visto como algo normal, considera Guilherme Macedo.

O diretor do Serviço de Gastrenterologia do Centro Hospitalar Universitário de S. João, no Porto, acredita que “não existe sensibilidade para o papel do fígado na saúde digestiva”, nem para o impacto do álcool. “A população compreende que o álcool afeta o fígado, mas não compreende a dimensão desta implicação na saúde.”

Prova disso são os elevados níveis de consumo. Segundo dados do último relatório (2019) do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e Dependências (SICAD), o consumo médio de álcool puro per capita, considerando pessoas acima dos 15 anos, situa-se nos 12 litros por ano. Os homens bebem três vezes mais do que as mulheres. “É indiscutível que temos um consumo médio excessivo”, sentencia Guilherme Macedo.

O consumo máximo recomendado é de 20 miligramas de álcool por dia no caso das mulheres e de 60 miligramas para homens, segundo o também presidente da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia (SPG). Em termos práticos, significa um copo de vinho diário. No entanto, o médico realça que, mesmo este valor de referência, ingerido diariamente durante vários anos, vai causar problemas. A mensagem a passar, sublinham os dois especialistas, é que o consumo deve ser esporádico. “Apenas em dia de festa, quando o rei faz anos”, metaforiza José Presa.

“Não é preciso andar embriagado para haver consequências na saúde, garante José Presa, presidente da Associação Portuguesa para o Estudo do Fígado
(Foto: DR)

O problema em Portugal deriva, além da componente cultural e da aceitação social, da facilidade de obtenção. É acessível e barato, critica o presidente da Associação Portuguesa para o Estudo do Fígado. “Se se tornar menos disponível, vai haver menos consumo.”

Bebida diferente, risco igual

Segundo o mesmo relatório do SICAD, o vinho é a bebida alcoólica preferida dos portugueses (representa 58% do consumo total). Mas não há bebidas melhores ou piores. “O verdadeiro impacto é a quantidade do álcool”, seja ele diluído de qualquer forma, explica Guilherme Macedo. “Um vinho pode ter outros produtos anunciados como vasoprotetores, favoráveis ao coração, mas nunca foi provado que esse efeito é superior ao efeito prejudicial do álcool.” Não existe evidência científica, destaca o investigador e gastrenterologista especializado em hepatologia.

Mas há outros mitos relativos aos problemas no fígado. José Presa lembra que “não é preciso andar embriagado para haver consequências na saúde”. Em resumo, o médico especializado em doenças do fígado no Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro afirma que vida saudável e álcool “são conceitos antagónicos”.

E os consumos em níveis como os registados em Portugal trazem consequências. O problema mais comum é a deposição anormal de gordura no fígado – esteatose hepática – que pode causar inflamação naquele órgão. O álcool pode também levar a inflamação pela morte de células. O fígado, ao tentar regenerar-se, e com sucessivas agressões, vai acumular lesões que depois ficam agrupadas numa nova estrutura chamada cirrose. Neste ponto, quando “sofreu agressões continuadas e entra em exaustão”, sustenta José Presa, “não há retorno”. Numa fase mais avançada, estes problemas podem degenerar em cancro no fígado.

Quando o consumo de bebidas alcoólicas está associado a outros fatores de risco, a situação é ainda mais grave. Peso excessivo, história de doença na família ou toma de medicação são alguns dos pontos a ter em atenção. “O álcool induz a ação de determinadas enzimas, que funcionam no fígado, e que aceleram ou perturbam o metabolismo de medicamentos”, detalha Guilherme Macedo. Uma bomba-relógio.

Os sinais silenciosos, a dependência

Apesar dos grandes estragos, “não há sintomas nenhuns”. O presidente da SPG adverte para o caráter silencioso do fígado e lembra que, quando surgem sintomas, a doença por norma já está avançada e o prognóstico é reservado. Sem queixas, os doentes vão muitas vezes à consulta de gastrenterologia por valores alterados em análises de rotina, que são de grande importância, realça Guilherme Macedo, “porque é a forma de identificar que há um problema.”

“É indiscutível que temos um consumo médio excessivo”, reconhece Guilherme Macedo, presidente da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia
(Foto: DR)

Pedro é o caso que comprova a regra. Com o início da pandemia a deixá-lo com menos trabalho e mais ansiedade, o consumo de álcool aumentou. Chegava a uma garrafa de vinho por dia. Mas os médicos garantem que, apesar de o pico de consumo em poucos meses ter espoletado os sintomas, o problema advém de quase 20 anos consecutivos de consumo, ainda que reduzido, diário. A maioria dos doentes chegam ao consultório com formas avançadas do problema hepático, devido ao “consumo excessivo de álcool de muitos anos e com grande impacto na saúde digestiva”, refere o gastrenterologista do Hospital de S. João.

“Mas eu não sou alcoólico” – é a reação habitual dos doentes, segundo Guilherme Macedo. Porém, em muitos casos há uma dependência associada. “A adição não é, na maior parte das vezes, reconhecida pelos próprios, porque são pessoas perfeitamente integradas e aceites na sociedade.”

No caso de Pedro, a aceitação foi rápida. Há um ano e meio que não toca em álcool. Também deixou de fumar, “porque uma coisa puxava a outra”. A família está solidária e também aprendeu uma lição. “Até no Ano Novo brindámos todos com sumo.”