Balancete de um homem
Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.
O contabilista Mário não apareceu, mas a presença do arguido não se afigurava indispensável (assim se diz) e começou o julgamento por crime de abuso de confiança. A juíza mandou entrar Vítor, vítima e testemunha. Vários anos pesados, pendurados nos olhos claríssimos, na voz esticada e fina. Foi-os largando na audiência, como o piloto de balão de ar quente abandona sacos de areia, liberta o lastro para subir nos céus.
– O senhor conhece o arguido por que razão?
– O pai dele é que me fazia a escrita. Também era contabilista.
– O senhor tinha uma empresa?, continuou a procuradora.
– Cheguei a ter dois estabelecimentos. Um estava em meu nome e o outro no nome da minha mulher.
Uma drogaria, uma loja de louças.
– O pai do arguido faleceu e quem é que ficou com a sua contabilidade?
– Ele, o filho, apresentou-se no meu estabelecimento… e perguntou se queria que ele continuasse. Eu disse que sim, porque ele tinha toda a escrita que estava com o pai.
– Entregou alguma coisa ao senhor Mário para desenvolver essa contabilidade?
– A partir daquela altura, eu entregava-lhe todos os registos mensais para fazer a cobrança do IVA e para a escrita toda.
– Entregou alguma senha das Finanças?, disse a procuradora.
– Não, ele aproveitou o que estava já do pai, que tinha acesso ao computador, e ficou-me com as senhas.
– Como é que entregava os documentos ao senhor Mário?
– Todos os meses iam lá receber a mensalidade e, nessa altura, eu entregava-lhe as facturas. Às vezes vinha ele buscar as facturas, outras vezes vinha a esposa.
– E o que aconteceu para o senhor estar aqui hoje?
– O que aconteceu foi que começou a falhar. Na questão do IVA, por exemplo, um dia telefonou-me às dez da noite a dizer que… para me dar a senha para eu ir pagar ao multibanco… mas eu moro numa localidade longe do centro e não tinha hipótese absolutamente nenhuma. E coisas assim do género. Falhava até ao último dia, umas vezes dizia que entregava… as coisas foram-se arrastando. E eu sempre com o coração nas mãos, não sabendo como é que estava… Ligava para ele e não atendia o telefone.
Um dia, Mário foi lá receber (mensalidade de 70 euros) e Vítor disse “eh pá, isto acabou, entrega-me a documentação, não posso estar assim”. Não entregou nada. Depois, o problema de ele não fazer a escrita. O IRS não foi entregue. Só mais tarde, mas incompleto, porque não tinha a documentação toda. Pela segunda vez, a mulher reentrava no caso. A voz de Vítor esticou-se mais, elástica:
– A minha mulher também foi notificada por não entregar o IRS. E depois acabou por arranjar um sarilho tremendo que, olhe, hoje vou também ao divórcio! Está marcado para as três e meia! Quer dizer, no meio disto tudo, aconteceram estas coisas, ela não acreditava que eu não tinha culpa absolutamente nenhuma, e também pagou multas, etc..
Nunca recuperou a senha do portal de Finanças, nem os papéis. O contabilista criminoso Mário, filho de um contabilista respeitado, eclipsou-se no ar. Entrou a segunda testemunha:
– Fui namorada dele. Separámo-nos em 2019. Conheço-o daí.
– Eram casados.
– Há pessoas que se calhar pensavam que era casada, mas eu nunca disse a ninguém que era, nem usei aliança!
Voz de passado de vergonha. A juíza interrompeu-a:
– Viveu com o arguido como se fossem marido e mulher e nesse período ele praticou estes factos de que estamos aqui a julgar. Pode não falar.
– Eu não tenho problema nenhum em falar o que quer que seja. Eu não queria era ter contacto com ele…, suspirou a mulher.
– Ele não está aí. Ele não veio. E à partida não o vai ver mais!, tentou a procuradora.
Mesmo assim, a mulher que não era casada com o contabilista criminoso preferiu calar-se e saiu, num alívio envergonhado.
Lá fora, os olhos azuis de Vítor olhavam o relógio. Falámos um pouco da contabilidade dos seus anos. A filha morreu em 2017 e a companhia de seguros não quis pagar a casa, “com uma mentira”. Um advogado levou-lhe dois mil euros “e não fez nada.”
– Também dele fiz queixa por abuso de confiança.
Quando recuperava das dívidas, a pandemia. Vai fazer 77 anos. A mulher pediu o divórcio e é hoje, é esta tarde, vai sair daqui e segue para lá. Que dia, senhor Vítor! Quem pode confiar noutro? Balancete pessoal:
– Ao fim de 60 anos, fico sozinho.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)