As passarelas como espelho da vida real

Marcas e designers apostam cada vez mais em modelos que saem dos parâmetros convencionados como perfeitos. Uma estratégia que passa por atingir uma melhor identificação e adesão do público aos produtos, sem estereótipos. Será que resulta?

“Criação, para mim, significa produzir algo que toca a vida de pessoas reais.” A frase pertence ao designer italiano Giorgio Armani e resume o caminho trilhado pela moda nos últimos anos, no qual a beleza passou a ser interpretada individualmente, sem regras coletivas.

Nos desfiles, campanhas e publicidades de roupa, lingerie e acessórios há cada vez uma aposta em modelos ecléticos e que refletem diversidade. A beleza editada parece ter os dias contados e há espaço para todos os tipos de corpos, peles dos mais variados tons, com estrias, com marcas, com manchas, tatuadas, e com deficiências físicas.

No último desfile, a dupla Marques’Almeida levou famílias reais à passarela
(Foto: Manuel Lastiri)

“Imperfeitos” para alguns, estes modelos apresentam-se como ideais no propósito de conquistar o público, que neles se vê representado. Assim confirma Marques’Almeida – marca fundada pelos designers Marta Marques e Paulo Almeida – há alguns anos, desde que passou a levar homens e mulheres comuns, com as suas singularidades, e não apenas profissionais à passarela. “Foi um processo de crescimento para nós. Ao perceber as pessoas que estão no desfile, percebemos também os consumidores. Aprendemos com eles”, reforçou Marta Marques, após terminar o Portugal Fashion. O facto de serem “cada vez mais diversos e inclusivos”, como notou Paulo Almeida, a par de uma comunicação direta, tornou este posicionamento uma identidade da casa, que vende em mais de cem lojas espalhadas pelo Mundo.

João Matias foi o primeiro modelo português em cadeira de rodas e fez parte do projeto inclusivo da marca Marques’Almeida no ano passado
(Foto: Manuel Lastiri)

Este ano, pela primeira vez, a dupla apresentou propostas de criança, no mesmo dia em que lançou a nova loja online só para os mais pequenos. As filhas Alice, de dois anos, e Maria, de cinco, desfilaram peças de uma coleção que é “para toda a família”, à imagem dos muitos que também se sentaram na primeira fila, os clientes. O ano passado, a passagem de Marques’Almeida incluiu ainda um modelo em cadeira de rodas, João Matias, que é dono da agência multidisciplinar Bound, mas sente limitações ao nível de oportunidades de castings.

“Ninguém vive de corpos de manequins”

Inclusivo foi também o desfile que celebrou os 30 anos de carreira de Fátima Lopes, no final de setembro, pois “ninguém vive de corpos de manequins”. “As pessoas reais têm corpos diferentes, portanto toda a vida criei para todos os tamanhos”, sublinha. A criadora já tinha usado uma modelo XL, até porque a sua agência, a Face Models, tem o departamento plus size e “faz todo o sentido”. “O público identifica-se muito mais com desfiles que mostrem diversidade do que com o estereótipo. Esta é uma tendência que veio para ficar. Mesmo as campanhas publicitárias procuram uma identidade real, quando vivemos os tempos mais democráticos da moda.”

Rainara Baldé no desfile dos 30 anos de carreira de Fátima Lopes. A modelo integra o departamento plus size da agência da criadora
(Foto: Carlos Rodrigues)

A agência da estilista lançou em Portugal o modelo moçambicano Illi Gaspar – que passou pela ModaLisboa e pelo Portugal Fashion- , chamando a atenção por ter metade do rosto marcado pelo vitiligo, a condição crónica caracterizada por áreas de despigmentação da pele, que há muito distingue a top model internacional Winnie Harlow. Marginalizada na adolescência, a canadiana de ascendência jamaicana recuperou a autoestima a trabalhar na moda, transformando o seu “problema” num trunfo aproveitado por grandes marcas. Desfilou para a Victoria’s Secret e é embaixadora, por exemplo, da Puma “para inspirar todo o público feminino”.

Por cá, Teresa Arraião sofre da mesma condição genética que de nada a impede, brilhando como modelo de lingerie da Sysye Intimate, a marca criada pela designer de moda Vânia Rodrigues. Depois de anos “a criar para disfarçar silhuetas”, a empresária decidiu apostar num negócio “para todo o tipo de mulheres e todo o tipo de corpos, partindo do interior”. “Sendo eu também plus size, senti que havia uma lacuna e percebi um desconforto nas mulheres com quem falava que diziam não encontrar roupa interior confortável”, explica.

A marca Sysye Intimate também aposta em pessoas “reais”. Aqui, a modelo plus size com vitiligo Teresa Arraia
(Foto: DR)

O projeto alicerçou-se nos feedbacks. O intuito é vestir “mulheres do XS ao XL (para já), com materiais e cortes confortáveis” e a campanha de lançamento junta “quatro mulheres diferentes e de áreas distintas”. “Quis esse contraste que existe na vida real”, assume Vânia, certa de que a estratégia é eficaz, nomeadamente em mercados como Inglaterra e Espanha. “Sinto mais abertura lá fora do que em Portugal, mas o caminho está mais livre do que há três anos. Mesmo com o digital, e as imagens irreais que transmite, vejo muitas mulheres a quererem expressar-se como são”, acrescenta.

O nicho da roupa interior é o que mais tem contribuído para mudar mentalidades e derrubar preconceitos. A Kacau – Tom de Pele surgiu em dezembro do ano passado para “servir todas as cores de pele e a beleza feminina”, oferecendo “nudes mais inclusivos e formas para todas as mulheres”. “Nós temos a nossa relação com o corpo. Mas quando olhamos, na publicidade ou nas redes sociais, para alguém com quem nos identificamos faz mais sentido rever-nos naquilo que consumimos”, afirma a responsável, Elisabete Moreira.

Campanha da Kacau que pretende evidenciar corpos e peles diversificados
(Foto: Hugo Sousa)

A produção que promove a Kacau tem como protagonistas mulheres “sem filtros”, selecionadas através do Instagram e depois de uma conversa em que despiram vulnerabilidades. Os comentários que chegam à marca provam que a mensagem está a ser passada, o que se reflete também nas vendas e afirmação no mercado.

A mais-valia da comunicação orgânica

O fenómeno dos influencers potenciou “a imagem de que tudo é perfeito”, mas, como salienta Ricardo Morais, “aquilo que observamos nos últimos tempos é uma tentativa de as marcas se aproximarem das pessoas”. Doutorado em Ciências da Comunicação, o professor de Relações Públicas percebe que “as marcas se têm inspirado na realidade para desconstruir essa imagem de perfeição que sabemos que não existe”. Esse, diz, “é o caminho para não serem apanhadas em falso”, no que toca à credibilidade.

Nesse sentido, o especialista em gestão de influenciadores Rubén Correia nota que, “através das redes sociais, as marcas começaram a apostar numa comunicação mais orgânica e muito mais real” e “passaram a escolher pessoas “imperfeitas”, que esteticamente não respondem aos padrões de beleza, exatamente como a maioria da população”. “Isso faz com que as pessoas se envolvam, se entreguem e acabem por consumir determinado produto ou serviço, porque acreditam no que estão a ver e na mensagem que aquela marca está a transmitir”, avalia, com provas de que “quanto mais real for a comunicação, maior é a identificação e adesão do público”.