As obras
Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.
Por esta altura, julguei que a casa velha que comprei estivesse pronta, cheia de paredes verdes, vermelhas, portas de rosa, quadros de amigos e figurado exuberante de Barcelos. Por uma obra tão simplificada, julguei mesmo que já levaria semanas de decoração e deleite. Ao contrário, com a chuva que vai neste fim de outono, mais depressa verei navios a passar pelas nobres terras de Faria. Campos e castelos a perder de vista, mas nada das minhas paredes às cores e da minha alegria ou sequer esperança.
Era tudo para começar no Natal. Quero dizer, a casa estaria pronta para que a vida como um todo parecesse começar no Natal, feita de festa e gente, feita dessa ternura estranha que nos acontece. Mas os natais têm sempre qualquer coisa de fraude. O esforço para aquela alegria talvez se torne uma carência ilegítima e sem sentido. Mais valia que não esperássemos nada deste tempo, ou de tempo nenhum. Mais valia que não existisse um estímulo das ternuras nem das relações. Haveria de ser algo mais sóbrio, criado para uma refeição apenas grata e cordial.
Acreditei mesmo, pelo pouco de obras que a casa precisa, que já teria bastante de chás ali aquecidos e do cheiro a caril. Já teria disposto meus cadernos nas estantes do escritório e já saberia se com o frio aparece a coruja que vi, por vezes, em Agosto, ali ao fim dos dias. Acreditei piamente que avançaria o meu romance novo ali, na casa com que sonhei, encostado às minhas tralhas como enfim chegado ao lugar perfeito, aquele que me corresponde por inteiro à vontade e à loucura.
Dizem-me os amigos que as pessoas das obras desaparecem, como se fossem de diluir na água ou subir aos céus num clarão. Desaparecem. Ficam sem corpo, sem voz, talvez não lembrem mais nada, não possam encontrar o caminho dos seus, de suas próprias vidas, talvez não existam mais, serão outras pessoas que não quem eram. Eu, não sei. Sinto tudo de modo estranho. A educação manda que fique paciente e eu pensei a vida inteira a paciência como uma virtude extrema, mas também é verdade que a paciência me tirou anos, deixou que perdesse anos com quem esgota a energia dos outros, com quem derrama sobre os outros suas ideias e práticas imprestáveis, precipitadas e abusivas. Em tantas ocasiões, a paciência, com isso da empatia também, serve muito para que nos deixemos usar, aguardando quietos que entendam o feio do que fazem, o feio do que nos fazem.
Estou, pois, a ficar impaciente. Já era muito de prever que a vida me batesse o necessário para perder qualquer candura. E estou, sem dúvida, a olhar para a minha grande casa velha, tão bela quanto adiada, sem saber que fazer. Talvez tenha sido sonho demasiado grande o de acreditar que haveria modo de habitar algo assim.
No Natal, vou comer grato e cordial. Não há mais nada senão a aprendizagem da gratidão pelo pouco e pela companhia, que é sempre muito.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)