As mulheres que lideram as semanas de moda nacionais

Eduarda Abbondanza é a “mãe” da ModaLisboa. Mónica Neto estreou a direção executiva do Portugal Fashion. De gerações diferentes e formações distintas, somam percursos singulares e um presente exigente à frente de grandes projetos

Incomparáveis, mas unidas pela moda nacional, Eduarda Abbondanza e Mónica Neto são as mulheres que comandam, respetivamente, a Lisboa Fashion Week e o Portugal Fashion. Sem medo, mesmo que os tempos envolvam algumas provações. Eduarda é formada em Design de Moda pelo Centro Internacional de Técnicos de Moda (CITEM), em Lisboa. Mónica licenciou-se em Ciências da Comunicação com especialização em Assessoria de Imprensa pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, o que as faz, desde logo, muito diferentes, a par de experiências de vida distintas, fruto das respetivas idades.

Aos 60 anos, Eduarda Abbondanza tem um percurso que daria um livro ou até um filme – “Não posso porque há muitos nomes que me matavam a seguir. Só se for um livro de ficção”, brinca, deixando perceber que há factos demasiado privados. Mónica fez 37 anos a 15 de outubro, no último dia da mais recente edição do Portugal Fashion, e anda há menos tempo no meio. Ambas são (re)conhecidas pelos projetos a que estão ligadas, pelo trabalho que desenvolvem e pela gestão eficaz de equipas multifacetadas.

São elas que gerem orçamentos e gizam estratégias para que, na hora H, nada falhe. Até se acenderem os holofotes, a música começar a tocar e as coleções dos criadores surgirem na passarela, há sempre muitos meses de trabalho e pouco tempo de descanso. “Não me lembro da última vez que dormi oito horas”, desabafa Mónica Neto, assegurando que tenta tirar tempo para ela, mas “há alturas em que há um desequilíbrio acentuado”. “Foi o caso da última edição do Portugal Fashion, em que dei mais de mim e notei que me ocupou o tempo todo.”

Em 2012, um cancro da mama fez Eduarda Abbondanza “repensar muita coisa”. “Já não sou uma workaholic. De cabeça sim, pois estou sempre a investigar, a ver, a pensar e, para parar, vou para o Alentejo, para um sítio onde não haja wi-fi.” O reiki e a meditação são aliados, quase sempre com o buldogue francês Toni Abbondanza por perto. Mais calma, controla melhor a rebeldia de outrora, sem nunca se esquecer da hepatite viral que a confinou a uma cama aos oito anos, afastando-a do ballet clássico e do contacto com outras pessoas. A revolta levou a uma depressão e a uma anorexia, que superou ao conquistar uma bicicleta vermelha, vinda de Inglaterra e oferecida pelo pai. “Eu não controlava nada e o facto de ter feito um pedido tão extravagante ao meu pai e de ele mo ter concedido foi um poder que eu encontrei na minha vida.”

Teatro, Milão e o regresso a Portugal

A ligação de Eduarda Abbondanza à ModaLisboa acontece desde sempre, não fosse fundadora, a par de Mário Matos Ribeiro. Foi em 1991 que o evento estreou, anos depois de a mentora ter descoberto “a moda como área de trabalho durante o primeiro casamento, em Milão”. “Três semanas depois de lá ter chegado percebi que a moda era claramente a minha praia”, recorda.

Em pequena, apesar da influência da mãe – “muito culta e muito informada”, dona de “um estilo muito próprio” e de dress code para a filha -, Eduarda não se interessava pela área. Mas há uma explicação: “Eu era hiperativa e o facto de estar ocupada era muito importante para o meu equilíbrio. Tinha uma capacidade de trabalho incrível. Em Portugal não havia moda, estávamos no pós-revolução, e eu dedicava os meus dias a projetos coletivos. Fiz muito voluntariado, participei em inúmeros projetos, trabalhei dois anos e meio nos CTT, fiz os concursos todos que se podiam fazer na altura até me cansar. Trabalhei no teatro, na Casa da Comédia, com Filipe La Féria, Teresa Ricou, Lia Gama, Rogério Samora, muita gente. Sabia que não queria ser atriz, mas queria passar por aquela experiência”.

Uma hepatite viral, aos oito anos, marcou a infância de Eduarda Abbondanza, que, desde 2010, com a saída de Matos Ribeiro, passou a estar sozinha à frente da ModaLisboa
(Foto: DR)

Mesmo sem pretensões de vingar na representação, fez teatro amador durante três anos. Aprendeu a colocar a voz, entre aulas de karaté, semiótica, semiologia e escrita, e apaixonou-se pelo italiano com quem casou vestida de cor-de-rosa, na década de 1980. À boleia do matrimónio, viveu “oito ou nove anos” em Milão, onde ainda se sente em casa. Após o divórcio, regressou em definitivo a Lisboa, em 1986/1987, com cem contos (500 euros) no bolso, e o curso de Design de Moda tirado no CITEM, entre 1982 e 1984, quando já estava em Itália. No currículo, inscreveria ainda um estágio de seis meses com a estilista Ana Salazar (1985).

Bairro Alto berço da ModaLisboa

Mesmo que inconscientemente, a história da ModaLisboa começou a escrever-se no Bairro Alto, quando Eduarda começou a colaborar com Mário Matos Ribeiro. “Criei a minha própria marca Eduarda Abbondanza, que o Mário pôs a vender na loja dele. Mais tarde, em 1989/90, fundimos as duas marcas e ficou Abbondanza Matos Ribeiro.”

Na época, lembra, foram convidados para a direção de moda da Portex, no Porto, durante dois anos e meio – cinco edições. “Tínhamos a loja, vínhamos a Lisboa, mas trabalhávamos muito no Porto e também no estrangeiro. Depois, a Portex encerrou e, em 1990, tivemos um convite do Pelouro do Turismo da Câmara de Lisboa para fazer um evento nas festas da cidade. E lá fizemos.” Estava dado o pontapé de saída para o que viria a tornar-se a ModaLisboa. A primeira edição foi em 1991, enquanto Eduarda, a par de Matos Ribeiro, continuava a apresentar as próprias coleções lá fora, como em Barcelona, na Gaudi, e a desenvolver uniformes, guarda-roupa para dança e teatro. “Nós só trabalhávamos, mas gostávamos do que fazíamos.”

O evento cresceu de tal forma que, entre 1993 e 1996, houve que parar, “criar a associação e montar escritório, de maneira a continuar o projeto e a responder profissionalmente às exigências que eram colocadas”. Até então, limitavam-se a ser uma “iniciativa”, sem instalações: “A Câmara emprestava-nos os computadores, não tínhamos backup”. A nova estrutura trouxe a designação Lisboa Fashion Week agregada. Em 2010, com a saída de Matos Ribeiro, Abbondanza passou a estar sozinha à frente da ModaLisboa. O facto de ser mulher “poderá eventualmente ter dificultado”. No entanto, “nunca foi condição para não seguir determinado caminho”.

“A Eduarda tem uma grande capacidade de descobrir novos talentos, novos espaços e intervir na cidade de Lisboa. É uma lutadora! Sou um grande admirador do seu trabalho, da capacidade de reinvenção”, assegura Paulo Gonçalves, diretor de comunicação e porta-voz da APICCAPS
(Foto: Rita Chantre/Global Imagens)

Em 1993, da união de facto com Mário nasceu a única filha, Sofia Matos Ribeiro, que é hoje “uma expert em comunicação digital” e que, assim, lhe permite colaborar, como freelancer, com a ModaLisboa. Sobre a mãe, Sofia diz que a encara “quase como uma irmã mais velha”. “Cá em casa sempre se falou da ModaLisboa. Quando deixei de a frequentar como espectadora, e passei a fazer parte da equipa, foi bastante especial, porque, para mim, a ModaLisboa é família e muitas memórias.” Ver a mãe em ação desde sempre, e o facto de ter viajado com a progenitora pelo Mundo, acabou por despertar a veia da comunicação e a criatividade em Sofia, que diz serem as duas “muito parecidas”. Eduarda corrobora e afiança que são “extremamente cúmplices”, a que não será alheio o facto de ter criado a filha sozinha a partir dos dez anos, tendo apenas a ajuda dos próprios pais.

Vantagens de ser boa aluna

“Criança muito sonhadora”, Mónica Neto admite que sempre teve “um lado artístico”, se bem que distante da moda. Ou melhor, em pequena, os desenhos de croquis de roupa que, há dias, a mãe encontrou numas arrumações talvez fossem um sinal do que acabaria por acontecer.

Mais crescida, na hora de decidir um rumo académico, como “também escrevia para o jornal da escola”, inclinou para comunicação. “Mas havia aquele peso da família, que dizia ‘vê lá, se calhar é melhor Direito’.” A boa média conseguida no Secundário colocou-a em Ciências da Comunicação, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, a primeira opção. Especializou-se em Comunicação Empresarial e Assessoria de Imprensa. Vasco Ribeiro, atual chefe de gabinete do presidente da Câmara Municipal do Porto, foi seu professor. “A Mónica foi a aluna com a média mais alta do seu ano”, o que lhe permitiu ser a primeira a escolher o local de estágio – a Associação Nacional de Jovens Empresários (ANJE). “Entrei para a ANJE sem saber sequer que tinha aquele peso tão forte na organização do Portugal Fashion e que a comunicação da ANJE estaria assim tão envolvida”, admite Mónica Neto. No final, tirou 19 valores, passou para um estágio profissional, e nunca mais saiu. Corria o ano de 2007 quando Mónica se estreou no Portugal Fashion: “Foi numa edição no CACE Cultural do Porto, em que tudo cabia numa sala muito pequenina, em que as acreditações de imprensa cabiam numa caixinha de disquetes. Era tudo numa escala muito micro. Na altura, aquilo marcou-me, apesar de a minha intervenção ser mínima”.

Natural de Paços de Ferreira, onde continua a viver, Mónica Neto foi uma criança “muito sonhadora”, mas sempre longe do mundo da moda, apesar de, em pequena, ter feito alguns esquissos de roupa que, há dias, a mãe encontrou numas arrumações
(Foto: DR)

Vasco Ribeiro, que também trabalhou no Portugal Fashion no início da carreira profissional, não tem dúvidas. “O percurso da Mónica não vai terminar aqui. Vejo um potencial muito grande, não só pelo dinamismo que apresenta, mas também pelos fortes conhecimentos que possui na área da comunicação e na área da gestão.”

A emancipação de Mónica Neto

Projeto a projeto, Mónica Neto abriu portas na área digital da ANJE e foi “acumulando cada vez mais responsabilidade”. Lançou uma revista com conteúdos sobre empreendedorismo e fez uma pós-graduação em Gestão, ainda “sem pensar algum dia em fazer gestão ou coordenação operacional de uma área que implicasse isso”. Chegou a coordenadora do gabinete de comunicação do Portugal Fashion, até que, em 2018, numa fase de restruturação, foi promovida a diretora de comunicação.

Nessa altura, a ascensão natural seria desempenhar essa função. No entanto, na verdade, certo dia, desafiaram-na a assumir a direção executiva, abraçando um cargo que não existia. “Comecei a rir e disse ‘estão a brincar comigo?’.” Não estavam. Insistiram na proposta e sugeriram que “fosse para casa pensar”. “Era sexta-feira e aquele fim de semana foi horrível. Estava num dilema: sabia que não estava a pegar num projeto fácil, pois estávamos numa fase de remodelação, mas também sabia que não me iria perdoar se não aceitasse, embora reconhecesse que não me considerava à altura.” Depois de muito pensar e refletir, “tinha que dizer que sim. Ou não fosse Balança”.

“Vejo na Mónica um potencial muito grande, não só pelo dinamismo que apresenta, mas também pelos fortes conhecimentos que possui na comunicação e na gestão”, reconhece Vasco Ribeiro, antigo professor de Mónica Neto
(Foto: Maria João Gala/Global Imagens)

Nos primeiros tempos, diz ter sentido “um certo desdém em relação ao cargo e algum ruído”. Razões? “Ser nova para as funções, ser mulher e se calhar ser alguém que vinha da aldeia [no caso, Paços de Ferreira, de onde é natural e onde vive] pode consubstanciar uma série de preconceitos.” Além disso, acrescenta, “uma mulher num cargo de gestão precisa sempre de dar o dobro para conseguir o mesmo que um homem”.

Sempre em equipa

Como criativa que é, Eduarda Abbondanza reconhece que lhe custa lidar com a burocracia, mas, confessa, conta com um conjunto de profissionais “criado para responder a todas as questões”, até porque sempre gostou de “trabalhar em equipa”. “Da mesma maneira que, pessoalmente, sou um bocadinho bicho do mato e preciso de estar sozinha, em termos de ação, trabalho com e para as pessoas.”

Joana Jorge fui aluna de Eduarda “numa vida passada”. Há sete anos que trabalha com a antiga professora na ModaLisboa, como project manager. Juntas colaboraram ainda na direção criativa da marca Pelcor. Joana diz que “é muito rico” lidar com Eduarda, que descreve como “uma pessoa muito perspicaz, exigente e muito lúcida”. À mesa, discutem “política, sociedade, o que estamos a viver, dando um ângulo de moda aos assuntos”. “É um processo muito interessante e desafiante”, pormenoriza. Entre elas “há espaço para a discussão” sem beliscar a amizade, pois “é tudo dito no momento certo”.

“Vejo na Mónica um potencial muito grande, não só pelo dinamismo que apresenta, mas também pelos fortes conhecimentos que possui na comunicação e na gestão”, reconhece Vasco Ribeiro, antigo professor de Mónica Neto
(Foto: Maria João Gala/Global Imagens)

André Atayde era jornalista quando conheceu Mónica Neto nos bastidores do Portugal Fashion, longe de imaginar que iria suceder-lhe na comunicação do projeto. Desse tempo, recorda “uma profissional completamente acessível e que resolvia os problemas o mais rapidamente possível”. Atualmente, tem-na como superior, o que considera “um privilégio”, apontando-a como “uma profissional que dá sempre o litro pelo Portugal Fashion e pela equipa”. O tipo de relação mudou, mas “é muito fácil lidar com a Mónica”. “Em picos de stress, costumo dizer que eu sou a parte mais calma e ela a mais stressada, e conseguimos sempre resolver os problemas.”

Autoexigente e “muito perfeccionista”, Mónica Neto percebeu que não precisa “de ser súper entendida em moda ou em gestão, se tiver a capacidade de juntar bons profissionais”. “Isso foi-me dando confiança. Ou seja, fui percebendo que muita da minha insegurança não se justificava, porque a minha mais-valia era ter a humildade de reconhecer que eu só tinha que ter a visão de ir buscar as peças certas.”

Eduarda Abbondanza e Mónica Neto têm diferenças e semelhanças. Paulo Gonçalves lida com ambas regularmente, ou não estivesse o setor do calçado associado à ModaLisboa e ao Portugal Fashion. Segundo o diretor de comunicação e porta-voz da APICCAPS, Eduarda “é uma visionária” enquanto Mónica “é sangue novo”.

O passado dia 15 de outubro, do seu 37.º aniversário, foi de trabalho para Mónica Neto, aqui atenta ao desfile de Diogo Miranda, em mais uma edição do Portugal Fashion
(Foto: Maria João Gala/Global Imagens)

“A Eduarda tem uma grande capacidade de descobrir novos talentos, novos espaços e intervir na cidade de Lisboa. É uma lutadora! Sou um grande admirador do seu trabalho, da capacidade de reinvenção”, considera Paulo Gonçalves, que vê em Mónica Neto “uma excelente comunicadora”, reconhecendo que escolhê-la como nova responsável do Portugal Fashion “foi uma aposta de rutura” que “surpreendeu”. “Mas é preciso que lhe deem tempo para fazer caminho, sem juízos precipitados. Ninguém consegue construir sem confiança e sem tempo”, adiciona, sabendo o quão difícil é a tarefa, ainda mais nos tempos que correm.

No caso do Portugal Fashion, a falta de financiamento de fundos comunitários obrigou a uma nova estratégia – a continuidade ainda é uma incerteza -, mas Mónica garante que saiu “mais forte”. “Não tenho medo de trabalhar, não tenho medo de me dedicar a uma causa como esta. Hoje, pensando naquele dilema se eu deveria ter aceitado ou se perdi mais ou ganhei mais, acho que ganhei mais, por tudo que provei à outra Mónica, à que existia entes dessa decisão.”