Rui Cardoso Martins

As melhoras da filha


Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

Absolvido. Palavra que sobe a colina até ao éle redondo no cume e desliza para um prado verde de alívio. Estavam dois homens à espera. Um, largo e mole, de cabeça baixa. Dias antes confessara tudo e agora só esperava a pena por pequeno tráfico de droga. Chamava-se Rui. O segundo homem trazia um lenço amarelo ao pescoço, um pouco à moda dos escuteiros, e jurara por tudo quanto é sagrado que houvera confusão, ele não traficava cocaína, heroína, o que fosse. Este chamava-se Valter. A juíza demorava-se nos bastidores e Valter piscava os olhos, impaciente.

Mais tarde, quando a juíza se sentou, pedindo com os ombros desculpas pelo atraso, começou a ladainha da leitura. Umas coisas estavam provadas, Rui vendera saquetas de droga. Inspirou fundo e começou a segunda parte da corrida:

– O que não se provou. Não se provou que a 19 de Julho de 2018, o arguido Valter se encontrava na rua [tal e tal], e que recebeu de Paulo a quantia de dez euros… que estava na posse de várias embalagens… que a quantia monetária encontrada com o arguido Valter correspondia à venda…

E, continuando, enquanto Rui até fora encontrado com uma saqueta de 0,85 gramas de cocaína na boca, sobre Valter tinha surgido, da parte da Polícia e de outras testemunhas, tal sortido de versões, que nem sequer se podia provar que ele estava na rua à hora em que alegadamente estava a cometer o crime. Um polícia disse que o viu, o outro nem sequer dele falou. A juíza:

– O senhor Valter terá feito alguma coisa… mas algum erro se passou.

A juíza suspirou outra vez, a voz grossa. Os olhos em meia persiana, conformados.

– O senhor já percebeu. Houve aqui uma grande confusão e, na altura de fazer prova, ninguém soube explicar bem as coisas. O senhor foi beneficiado e acabou absolvido. Os senhores podem sair.

Condenado a dois anos e um mês de prisão, Rui arrastou-se mole e derretido para fora da grade dos arguidos. Valter, pelo contrário, com o pescoço metido no lenço amarelo, seguiu atrás dele de espinha levantada, hirto como um candeeiro. Dava passinhos robóticos, os braços em modo automático, paralelos aos movimentos das pernas, numa felicidade extrema. Ouvi finalmente a voz de Valter e soava a fininha sirene de traineira entrando no molhe:

– O resto de uma boa tarde, sotora! E as melhoras para a sua filha!

Absolvido! A dois passos de mim passou Valter, um pardal de rua que escapou ao chumbo, e amanhã estará a celebrar o 25 de Abril, Dia da Liberdade.

Agora era a juíza que olhava espantada o Mundo. O Tempo parado no Espaço, a Via Láctea em suspenso. Virou-se para o escrivão.

– Foi o senhor J. que disse?!

– Ahhh… se calhar… foi aqui uma conversa com o senhor advogado…, respondeu o escrivão, o náufrago.

Certo: a meio da manhã, os advogados tinham perguntado pela juíza tantas vezes, por causa do atraso das audiências e das sentenças, que o oficial de diligências explicara que havia muito trabalho mas que também surgira um problema de saúde.

A juíza levou as mãos à cara, envergonhada, com talento comediante. E agora todos na sala tremiam atrás das máscaras, perdidos de riso numa súbita e humana sem-cerimónia, porque o riso estilhaça protocolos e rituais, e agora a juíza também se ria (e eu ria-me com ela) e ela repetia:

– As melhoras, esta agora…

E eu espero que a menina já esteja boa.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)