Publicidade Continue a leitura a seguir

As lutas diárias de pais surdos e filhos ouvintes

Sofia Aroso é surda desde nascença e Jorge Marques teve uma meningite aos dez meses de idade, que lhe provocou surdez. Têm dois filhos, Mariana e Diogo, ambos ouvintes (Foto: Artur Machado/Global Imagens)

Publicidade Continue a leitura a seguir

São filhos ouvintes de pais surdos e afirmam que a questão a colocar não é como aprenderam a oralizar. Foi natural. As dificuldades encontram-nas no dia a dia. Já foi pior, dizem, mas a escola, a saúde e os serviços não olham para estas famílias com a atenção que as mesmas reclamam.

Aos dez anos de idade “meteu pés ao caminho” e resolveu o problema que a mãe tinha no trabalho, que a poderia levar a ficar desempregada. Aos 12, seguiu porta a porta a cobrar dívidas do negócio do pai. Não pagavam o devido “por ser surdo e não poder defender-se ou por haver falha de comunicação?”. A questão mantém-se. A reflexão é feita agora, à distância de mais de 30 anos. Traduzia conversas dentro da própria família. Ia às Finanças ou ao banco. “Comecei a servir de ‘mini-intérprete’.”

Abel Moreira, sempre ligado à carpintaria, e Maria Oliveira, que saltitou entre diversas ocupações, estão atualmente na casa dos 60 anos. São os pais de Marisa Moreira e reconhecem o papel preponderante da filha primogénita nas responsabilidades familiares. Mas preferem olhar para o processo de integração no bilinguismo que, diz o pai, “foi natural, inato e intuitivo”. “Cada dia aprendia um novo gesto, pois a única forma de comunicação entre nós era a Língua Gestual.” A oralidade despontou com a família alargada, com a escola e, posteriormente, com a convivência diária com os irmãos.

Dos pais herdou a língua gestual, da sociedade recebeu a linguagem oral e escrita. O bilinguismo é a realidade dos chamados CoDA, sigla inglesa de Children of Deaf Adults. São crianças ouvintes filhas de pais surdos. Para Marisa Moreira, que passou a infância em Bragança, onde a ajuda escasseava para todos, ainda mais para quem era visto como diferente, as responsabilidades precoces foram “o normal”. “É sermos filhos e ao mesmo tempo pais.” Além disso, recorda a discriminação. “Só por verem os meus pais gestualizarem, diziam ‘olhem os mudos’ e a mim apontavam ‘olha a muda’.”

Este podia ser um excerto da narrativa do filme “CoDA”, de 2021, produzido por Sian Heder. Na ficção, Ruby é uma jovem ouvinte com os pais e o irmão mais velho surdos. Mas as histórias relatadas, ainda que semelhantes, não apareceram no grande ecrã, foram a realidade de Marisa Moreira durante os anos em que era suposto ter sido criança.

Intérprete. Ser ou não ser?

“Sempre foi um bichinho que pensei seguir.” Aos 18 anos, Marisa Moreira saiu de casa e foi tirar o curso superior de Ensino Básico. Ainda não sabia que ser intérprete era uma profissão com estudos próprios. Quando descobriu, pediu transferência para a Universidade do Porto. “A maioria dos CoDA segue a profissão de intérprete pela ligação emocional e por saber as dificuldades que esta comunidade tem, para poder ajudar.”

A Associação de Tradutores e Intérpretes de Língua Gestual Portuguesa (ATILGP) confirma que, apesar de não haver números centralizados, há tendência de filhos ouvintes de pais surdos seguirem a profissão de intérprete, tal como sugere o exemplo de Marisa Moreira e alguma bibliografia académica. Sofia Aroso, mãe de dois CoDA, não quer pensar nisso. “Não planeamos o futuro deles. Gostava que percebessem Língua Gestual para poderem comunicar connosco, mas não penso se serão intérpretes, como não imagino se serão médicos ou advogados.”

Marisa Moreira é intérprete de Língua Gestual Portuguesa e um dos atuais trabalhos de tradução decorre na missa de domingo da Basílica dos Congregados, em Braga
(Foto: Paulo Jorge Magalhães/Global Imagens)

É a casa dos Aroso e Marques, em Leça do Balio (Matosinhos), dizem-no as placas e fotografias penduradas sobre a lareira. Diogo, com sete anos de idade, definiu cedo o caminho no crescimento bilingue. Não gosta da LGP e, apesar de não saber o que quer ser, intérprete não é opção. Para já, prefere percorrer a sala de estar num triciclo de madeira que lembra o tempo dos avós. Apesar da inquietude e de não gostar de gestualizar, o pequeno não mostra vergonha dos pais, estando sempre pronto a qualquer resposta. No início da conversa, esclarece: “A minha mãe é surda desde nascença, o meu pai teve uma doença e ficou surdo, eu andei na creche e a pandemia começou quando eu entrei para o primeiro ano”. Só faltou contar que há também uma irmã, Mariana, que completará três anos em fevereiro. Das suas mãos, nem um gesto avistado.

“Não impomos que a primeira língua seja a gestual, ele não gosta. É verdade ou mentira, Diogo?”. A pergunta é feita gestualmente, mas a resposta chega vocalizada e confirma o que a mãe conta de seguida. “Ele sabe LGP e falamos sempre assim com ele, mas para nós ele oraliza. Talvez por termos facilidade de entender e oralizarmos um pouco, o que o leva a ser preguiçoso na utilização da Língua Gestual.” A mãe é Sofia Aroso, tem 36 anos e é licenciada em arquitetura, profissão que ainda não praticou profissionalmente, mas que se deteta pela decoração moderna da habitação. O pai, de 39 anos, chama-se Jorge Marques e trabalha em reparações informáticas. Apresentam-se com gestos entusiasmados por poderem contar a sua história na sua língua, a LGP. Já os filhos, afiançam, a língua materna deles é a portuguesa.

A bebé, apesar da pouca idade, pede atenção com os braços no ar. O movimento é óbvio, quer o colo da mãe. Pelo meio, a cadela, Nutella, quer também o protagonismo, mas depressa compreende o gesto de Jorge, que a manda deitar. “A Mariana ainda não consegue comunicar em língua gestual. Faz alguns gestos, como pedir comida ou dizer balão, mas não são perfeitos.” Sofia Aroso chama a atenção da pequena e gestualiza, dedo deslizando sobre a face, “olha a menina, que bonita, está a conversar com a mãe”. A criança de dois anos pára e atenta. Percebeu. “O Diogo aprendeu a comunicação gestual com a mesma idade.”

Para Diogo e Mariana, a oralidade foi introduzida maioritariamente por família e amigos. Para desenvolver a fala, são depois imprescindíveis a creche e a escola. Apesar de falar em “naturalidade”, Sofia Aroso mostra alguma preocupação. “Acho que os pais serem surdos pode influenciar um pouco o desenvolvimento escolar, mas estamos atentos e acho que não está a acontecer.” O pai, Jorge Marques, lembra que o caso é particular. A pandemia misturou-se com o facto de serem filhos CoDA e, neste momento, não conseguem distinguir se estas são consequências pandémicas.

A campainha que dá luz

Mais a norte, na Trofa, encontra-se outra família que partilha tanto da naturalidade como das preocupações de serem pais surdos e filhos ouvintes. “Evoluem na oralidade por causa do infantário, da escola e da família”, resume Ângelo Costa. A Língua Gestual é igualmente natural. “Em bebés, nós gestualizávamos e eles aprendiam.” Aos 47 anos, o professor de LGP é pai de dois rapazes – Pedro, de 14 anos, e Telmo, de 11. A mulher, de nome Carla Costa, também surda desde nascença, apresenta-se prontamente com o nome gestual: o dedo indicador desenha no ar um caracol abaixo da face. A mulher, natural de Cabeceiras de Basto, explica que todos o têm, é uma forma de identificar as pessoas, através de um gesto que marque uma caraterística particular de cada um, sem a necessidade de soletrar cada letra.

Quando chegou a hora de planear uma família, não havia dúvidas que os impedisse. O único receio, conta Ângelo Costa, era ter um filho cego ou com algum problema que impedisse a fala visual, o único meio de comunicação do casal. A receção, feita pelo pai, a casa, ainda com apontamentos da quadra natalícia, e a família, sentada junto ao sofá, são como qualquer outra. A televisão está nas notícias do dia. Entre respostas trocam impressões com gestos que denunciam que estão a pedir confirmação. “É como estou a dizer, não é?”, certifica-se o pai junto dos mais pequenos. Aqui, só a campainha indica alguma diferença – é visível e não audível. As luzes de teto da sala de estar começam a piscar e é sinal de que Ângelo Costa tem mais um convidado para receber à porta.

Carla Costa, trabalhadora fabril, e Ângelo Costa, professor de LGP, são surdos. Os filhos, Telmo e Pedro, são considerados CoDA (Children of Deaf Adults)
(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

Para o filho mais velho da família Costa, a LGP é a língua materna. “Aprendi primeiro do que a portuguesa.” O irmão, Telmo, abana timidamente a cabeça para corroborar. Entre conversas, trocam gestos ao mesmo tempo que oralizam. Os pais compreendem a situação e impor a comunicação gestual nunca foi opção. Carla Costa esclarece que, para os filhos, são só vantagens. “Eles percebem tudo o que dizemos. Já eu às vezes estou a vê-los falar com amigos e não percebo nada. E eles às vezes não querem contar.” Todos riem.

Os pais recusam colocar responsabilidade sobre os filhos. “Eu e a Carla sempre fomos surdos e a sociedade é ouvinte. Sempre nos desenrascamos. Queríamos apenas ter uma família e o objetivo nunca foi dar-lhes trabalho.” O adolescente Pedro Costa segue-se aos gestos do pai e garante que não sente qualquer diferença face aos colegas. “Só tenho vantagens.”

A nível social, Ana Machado da Cunha, Interna de Pediatria no Hospital de Braga, alerta para situações em que as crianças são “obrigadas a crescer demasiado cedo, por terem de servir como intérpretes para os pais”. Quanto à componente educativa, a opinião médica recai no resumo das famílias: o processo é natural. “Na escola, muitas vezes, o que se nota é um atraso no desenvolvimento da leitura ou na articulação de certos verbos, por falta desse estímulo e correção dos pais no dia a dia.” Sinais destes atrasos ou de exaustão levam a escola a ter um papel importante na identificação de casos em que há necessidade de intervenção. “Também o médico de família deve estar alerta.”

No entanto, em grande parte dos casos atuais “nem notam que haja um atraso na linguagem oral, porque desenvolvem as duas em simultâneo – são bilingue”, diz a médica pediatra. Mesmo quando a naturalidade não acontece, Ana Machado da Cunha acredita que são falhas facilmente colmatadas. “Cinco a dez horas semanais de convivência com outras pessoas ouvintes é suficiente para desenvolver uma linguagem oral correta.” Padrões fáceis de atingir até com a televisão, colmata.

Barreiras desde a escola

Tão simples como aprender qualquer outra língua é a explicação de Sofia Aroso para a necessidade de a LGP existir como disciplina opcional. “Não só para filhos como os meus, mas para toda a comunidade ouvinte. Para, caso se encontrem com um surdo, haja o mínimo de comunicação.” Para os CoDA, ter acesso à Língua Gestual no âmbito curricular seria vantajoso. “Por crescerem numa realidade com pouca ou nenhuma oralidade”, Armando Baltazar, fundador e atual assessor da direção da Associação de Surdos do Porto, destaca a possibilidade de haver atrasos na oralidade e na escrita. A instituição foca a grande dificuldade das famílias com situações CoDA no âmbito educativo, e a sinalização destes casos e a integração apropriada são caminhos ainda pouco explorados.

A LGP é considerada disciplina apenas para alunos surdos, referenciados para a educação bilingue. Entre associações e partidos políticos, foram várias as propostas de reforço da LGP junto da comunidade de alunos ouvintes, mas, para já, tornar a língua uma opção curricular é uma luta que se trava sem sucesso. O Ministério da Educação, questionado pela “Notícias Magazine”, realça a importância da LGP para as crianças surdas – para essas, já inserida num programa curricular próprio. No entanto, não esclarece porque é que esta língua não é ainda acessível aos alunos ouvintes como disciplina opcional nos restantes programas educacionais. A professora de Educação Especial Luísa Campos questiona: “Se há outras línguas internacionais, porque não existe uma língua que é nossa?” “Os CoDA são uma minoria dentro de outra minoria”, começa por reforçar a docente especializada em surdez, o que determina a falta de referenciação dos casos de CoDA “para uma intervenção atempada e precoce”. Acredita que quando são sinalizados atrasos no desenvolvimento, “são intervencionadas como se fossem portadores de uma deficiência, que não têm”. Por consequência, realça, “poderão ser alvo de medidas que não são adequadas à situação”.

Por isso, a profissional do Agrupamento de Escolas Dona Maria II, em Braga, parte integrante da rede de escolas de referência para a Educação Bilingue (instituições preparadas para a educação de alunos surdos), considera que faz falta um contingente especial que permita a uma família surda com um filho ouvinte pedir acesso excecional a uma escola de referência, onde a criança terá acesso à LGP. Ou seja, “uma família nesta situação que queira matricular o filho numa das nossas escolas poderá sensibilizar a direção a título pessoal, mas não há nenhuma legislação nem nenhum contingente. É um território por explorar”.

O Ministério relega a deteção e sinalização de CoDA para os “moldes previstos para todas as outras crianças/alunos que manifestem quaisquer características que as coloquem em desvantagem”, referindo o Sistema Nacional de Intervenção Precoce na Infância e a Equipa Multidisciplinar de Apoio à Educação Inclusiva. Acrescenta ainda que filhos ouvintes de pais surdos devem, “fora do seu ambiente familiar, desenvolver a sua oralidade”, não considerando a LGP ou a integração na educação bilingue já existente como fundamental nesses casos.

As dificuldades estendem-se aos pais, por vezes privados de acompanhar o desenvolvimento escolar das crianças tanto quanto desejariam, nomeadamente nas reuniões com os professores. A situação de Sofia Aroso e Jorge Marques foi facilitada pelo facto de residirem num município (Matosinhos) onde a câmara disponibiliza intérprete. Apesar de agradecer o apoio, Sofia lembra que “é apenas um intérprete para uma cidade com muitos surdos”. Além disso, os formatos digitais de conversa em grupo, como o Zoom, não são tão acessíveis quanto parecem para os surdos. “Não conseguimos acompanhar a tradução e quem fala em simultâneo, por isso estava sempre a pedir uma reunião presencial.”

Já a situação da família Costa é mais complexa. “Na pré-escola foi muito difícil. A educadora enviava recados por escrito, mas eram resumos”, conta o pai. “Não havia intérprete para essas reuniões.” A alternativa passava por pagar o serviço de interpretação do próprio bolso. Como a lei não prevê que os filhos possam estudar numa Escola de Referência para a Educação Bilingue, o que, na opinião de Ângelo Costa, “seria o ideal”, a situação manter-se-ia até aos dias de hoje. A solução foi mudar para uma escola com mais facilidade de acesso a um intérprete. Residentes na Trofa, os filhos Pedro e Telmo estudam em Matosinhos. O professor de LGP garante que o concelho onde moram não é caso único, “há vários municípios em que ainda não há apoio de intérprete”. Ângelo sublinha que não se trata de um capricho, mas de um direito. “Os filhos são meus, quero ser eu a acompanhá-los e a ir às reuniões. Não peço nada de extraordinário.”