Margarida Rebelo Pinto

As gavetas do coração


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

A cabeça serve para arrumar a cabeça, o coração serve para arrumar o coração e cabe a cada um a tarefa de se arrumar sozinho.

Os homens são como contadores indo-portugueses, com a cabeça, o coração e a vida organizadas por gavetas. E às vezes dentro das gavetas existem caixas. E gavetas secretas atrás de outras.

As gavetas servem para criar a ilusão de uma vida arrumada. Ao separarem a cabeça do coração, o trabalho da família e a família de outras vidas, lá se vão organizando, uns com mais frieza e objetividade, outros com mais hesitações e resistência. A frieza é aliada da eficácia. O coração é inimigo da arrumação.

As mulheres funcionam como um open space, gostam de ter tudo integrado, harmonizado. Acolhem, protegem e organizam, ligando a cabeça ao coração, o trabalho com a família, os amigos com os filhos. Existe um sentido de todo que por vezes falta aos homens. Talvez o comandante de um exército pense em todos os seus soldados, ou o diretor em todos os seus funcionários. Mas os homens põem os olhos na bola e focam-se em objetivos. E se o sucesso obrigar a algumas baixas, paciência.

A beleza dos contadores resulta da miscigenação estética, técnica e funcional decorrente da chegada dos portugueses à Índia, nós levámos a estrutura, os povos indígenas juntaram-lhe a arte dos embutidos. Foi um casamento feliz. As aplicações em marfim, madrepérola e tartaruga são os recursos da decoração que fazem destas peças verdadeiros tesouros, ricos em pormenores. Já dizia o Mies van der Rohe, Deus está no pormenor.

Também cada ser humano é a combinação única de uma base genética com os conhecimentos interiorizados ao longo da sua existência. Quem não aprende, não apreende nem guarda. Mas também existem aqueles que guardam tudo e vão fechando gavetas cuja chave é guardada num lugar que seja propício ao esquecimento. E se um perfume, um encontro casual ou uma música acordam uma memória, preferem fugir a enfrentar. E lá voltamos outra vez para as gavetas onde a vida se entala à força, como quem esconde um elefante numa despensa.

O problema é que nem a cabeça nem o coração têm gavetas, são mecanismos fluidos e elásticos. Ainda assim, porque viver no caos encurta o tempo que cá andamos, é importante arrumar o que é passível de ser arrumado.

A cabeça serve para arrumar a cabeça, o coração serve para arrumar o coração e cabe a cada um a tarefa de se arrumar sozinho.