As dores de crescimento dos novos partidos políticos

A saída de João Cotrim Figueiredo da liderança da Iniciativa Liberal, embrulhada em justificações enigmáticas e depois de conquistar altos níveis de popularidade, empurrou o partido para eleições. Em cinco anos, vai acumular quatro líderes. As novas forças políticas que entraram na cena nacional, todas sem exceção, têm enfrentado lutas internas à medida que conquistam expressão. As dificuldades, as mudanças, as guerras no caminho da consolidação.

Janeiro de 2022, rescaldo das eleições legislativas, João Cotrim Figueiredo em festa apelidava a Iniciativa Liberal de “fenómeno político”. Não era para menos. Desde que assumiu as rédeas em 2019 – e muitos vaticinavam um desastre ao sucessor de Carlos Guimarães Pinto – que a Iniciativa Liberal saltou de partido do Twitter e dos cartazes para a conquista de eleitorado. Afinal, Cotrim Figueiredo conseguiria o feito de passar de partido de deputado único, em 2019, para grupo parlamentar de oito deputados já neste ano, quando a IL se torna na quarta força política na Assembleia da República. E é no auge da popularidade que o líder anuncia a saída, de repente, ainda nem metade do mandato está cumprido. Sem que nada o fizesse prever. A justificação (que a poucos serviu)? Considerar que o partido precisa de uma atitude “mais combativa” e “popular” e não ser “a pessoa ideal para a corporizar”. Isso e dar tempo à nova liderança para se preparar com antecedência para os próximos atos eleitorais.

No imediato, ainda mal o anúncio da saída tinha tido tempo para assentar, já Cotrim, que não quis responder à “Notícias Magazine”, apoiava a candidatura de Rui Rocha à presidência da IL. O burburinho subia de tom. “O partido acabou de ter um sucesso eleitoral brutal, não se percebe o argumento de que não é o líder adequado. Há um certo mistério. E, por outro lado, o processo é um pouco bizantino. Além da saída mal explicada, é ele a designar um candidato, um sucessor. Num partido que é liberal parece quase monárquico”, aponta André Freire, politólogo, que acrescenta: “E agora a IL quer ser popular? Quer mimetizar o Chega? Isso não faz sentido nenhum. A IL não compete pelo eleitorado do Chega”.

Rui Rocha avançou com a candidatura para liderar a IL pouco depois do anúncio da saída de Cotrim. E tem o apoio do líder demissionário
(Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)

Rui Rocha avançou para a frente de batalha sem pestanejar. E tenta justificar-se. “Não se trata de uma passagem de testemunho. Teve a ver com tranquilizar o eleitorado da IL. Não podíamos avançar para uma situação que deixasse os eleitores em dúvida. Era preciso dizer que havia uma solução, não era uma sucessão.” Cinco anos depois, a Iniciativa Liberal – que trouxe o liberalismo para o xadrez político português, a novidade para eleitores jovens e instruídos cansados dos partidos tradicionais – caminha para o quarto líder (depois de Miguel Ferreira da Silva, Carlos Guimarães Pinto e Cotrim Figueiredo). “Não considero que estejamos perante dores de crescimento ou perante um problema. O facto de haver duas candidaturas – [Carla Castro também se fez anunciar, entretanto, na corrida] – é um sinal positivo e de grande vitalidade.” Tanto que Rui Rocha vai propor ao Conselho Nacional que as eleições não sejam em dezembro, mas em janeiro, para dar tempo a que mais membros avaliem uma possível candidatura.

Mas depois de feitos assinaláveis, com uma estrutura leve, o que pode Rui Rocha trazer de diferente e de “mais popular”? “A IL fez um trabalho muito bem feito face aos meios que tinha e que eram praticamente inexistentes. A falta de estrutura teve de ser suprida com muito entusiasmo. Agora, é preciso chegar a todo o país, com outra presença, conseguindo estar junto das pessoas, coisa que não era possível, porque o João não tinha disponibilidade física para estar em todo o país. O João fez uma avaliação e, perante a necessidade de levar o partido a todo o país, entendeu que nas próximas legislativas devia ser outra pessoa a liderar.”

Carla Castro foi a segunda liberal a entrar na corrida às eleições do partido. E garante não ser populista, antes reformista
(Foto: António Pedro Santos/Lusa)

Às bandeiras da liberdade económica e social, de escolha na saúde e na educação, que Rui vai manter no centro da IL, somar-lhe-á propostas na área da mobilidade, habitação, energia e revitalização do Interior, para dar resposta ao Portugal de hoje. “Não estamos a falar de populismo, estamos a falar de chegar mais perto das pessoas, seja em Bragança, Faro ou nas ilhas. De investir em criar estruturas em todo o país. O Carlos Guimarães Pinto assumiu a IL e teve sucesso. O João Cotrim Figueiredo assumiu a IL e teve sucesso. Estou convencido que não há duas sem três.”

Do outro lado da barricada estará, então, Carla Castro, que defende uma Iniciativa Liberal que não viva em torno do líder: “Nunca foi partido de uma pessoa só”. Tendo sido surpreendida pela saída de Cotrim – “Não acho que seja um bom momento nem que fosse necessário” – e considerado o apoio imediato a Rui Rocha “um processo pouco liberal”, quis avançar com uma candidatura alternativa, em resposta a apelos que chegaram de dentro do partido. “Portugal tem muitas necessidades de políticas liberais e é preciso explicar às pessoas o que isso significa na prática. O caminho já começou a ser feito, mas ainda há muito espaço para crescer.”

João Cotrim Figueiredo anunciou que vai abandonar a liderança da IL em dezembro, ainda nem metade do mandato está cumprido
(Foto: Mário Cruz/Lusa)

Foi coordenadora do gabinete de estudos do programa com que o partido se apresentou às legislativas e mantém ipsis verbis as propostas. “Não sou populista, sou reformista”, garante. Mas o que vem daqui para a frente? “Temos que ir a novos eleitores mostrar o que é isto do liberalismo, a novas zonas geográficas. Poucas pessoas saberão que temos uma política para a água, além das reformas de sistema eleitoral, da saúde e da educação que propomos. Mas internamente também há trabalho a fazer, do ponto de vista de uma gestão mais descentralizada, mais participativa, com mais apoio aos núcleos, aos autarcas.”

As dificuldades a reboque da expressão política

A IL está a arrumar a casa num revés que não é fenómeno raro em partidos recentes a tentar encontrar caminho e a gerir a conquista de expressão política ainda sem uma máquina oleada por trás, como a que os históricos partidos (PSD, PS e PCP) têm a girar há décadas. Recuemos bem atrás no tempo e esqueçamos os últimos anos férteis em novos partidos. Depois do borbulhar político do pós-25 de Abril, além do PRD, cuja figura mais icónica foi Ramalho Eanes – surgiu em 1985 e chegou a ser o terceiro maior partido parlamentar até cair num mar de fragilidades e deixar de existir em 2000 -, o Bloco de Esquerda foi, em 1999, o partido que se conseguiu implantar à esquerda até aos dias de hoje. Atraiu um eleitorado jovem, urbano, tal e qual a Iniciativa Liberal fez à direita.

Francisco Louçã, que não mostrou disponibilidade para responder às perguntas da “Notícias Magazine”, foi o rosto do BE durante mais de uma década. Saiu de palco em 2012 com o mandato cumprido, ao contrário de Cotrim, mas também apoiou uma candidatura à sua sucessão, naquele caso bicéfala, de João Semedo e Catarina Martins. Mas com uma diferença substancial: o BE já estava estabelecido no sistema político. E segue vivo, agora com Catarina Martins a solo, apesar do desaire das últimas eleições quando caiu de 19 para cinco deputados. Façamos, pois, “fast forward” nessa cassete até aos dias de hoje. Iniciativa Liberal, PAN, Chega, Livre, o cenário político soprou ventos de mudança e os novos partidos chegaram em força ao Parlamento. Todos já se viram embrulhados em polémicas, desde guerras internas a demissões ou mudanças repentinas na liderança.

Em 1999, o Bloco de Esquerda (hoje sob a liderança de Catarina Martins) era um novo partido que se conseguiu implantar à esquerda
(Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)

Há dificuldades no motor de arranque, assume o politólogo André Freire, na criação de estruturas, na consolidação institucional. “Os novos partidos, apesar de pequenos, são mais ideológicos do que os grandes. Por outro lado, por serem pequenos, as divisões tornam-se mais evidentes.” Embora não faltem nuances em cada caso. “No Livre, a questão da Joacine Katar Moreira foi um erro de casting e, mesmo assim, o líder do partido, Rui Tavares, conseguiu recuperar e voltar a eleger um deputado agora em 2022. No PAN, as divergências internas não começaram com a liderança de Inês Sousa Real nem com a saída de André Silva. O Chega é diferente, é um partido muito centrado no líder.”

Segundo António Costa Pinto, também cientista político, “a grande rutura é a entrada dos partidos no sistema parlamentar, quando têm que estruturar uma máquina mais estável e, portanto, é natural que passem por crises de crescimento”. A origem dos partidos, aqui, também é fator determinante. “A origem do Chega chama-se André Ventura. A origem do Livre chama-se Rui Tavares. São partidos cujos conflitos se estruturam em função da eventual contestação interna, mas que têm um líder permanente.” Caso diferente é o da IL e esta saída de Cotrim remete mais para “uma decisão estratégica”, pode ser “uma estratégia para regressar mais tarde”.

No campo mais recente, com três anos e meio, o Chega chegou a terceira força política e a reboque da expansão emergiram as guerras internas
(Foto: Rui Oliveira/Global Imagens)

“Mas estas fases são naturais num partido que passou de um deputado para um grupo parlamentar. Se olharmos para a história de partidos mais antigos, isso também é evidente. A história do PS no pós-25 de Abril é de divergências significativas. O PSD teve cisões brutais no grupo parlamentar brutais, com Sá Carneiro. O período era outro. Mas a afirmação de uma liderança estável é algo complexo quando o partido cresce e dá o salto.”

A sobreviver às guerras e tricas internas

Olhemos para o PAN. Quando, em 2021, André Silva deixou a liderança do partido, o lugar de deputado e a vida política, sucedia-lhe Inês Sousa Real, que nos últimos tempos enfrentou a divisão interna. O próprio André Silva veio a público defender a sua demissão, apontar erros à sua liderança, criticar a descredibilização do partido e a perda de 75% da representação parlamentar nas últimas legislativas (o PAN passou de quatro para um deputado eleito).

No início do ano, uma vaga de demissões na direção e Inês Sousa Real prometeu um relatório de auscultação interna cujos resultados se desconhecem. Ainda assim, já admitiu que será recandidata quando o partido voltar a ter eleições, o que deve acontecer em junho de 2023. Segundo a direção do PAN, que respondeu a apenas uma das questões colocadas pela “Notícias Magazine”, “qualquer organização política tem as suas dinâmicas naturais decorrentes dos ciclos de vida por que vai passando. Mudanças de liderança ou realinhamentos de estratégia, por exemplo, são não só naturais como também sinónimo de crescimento e de adaptação aos contextos vigentes”. Todos os partidos, defende o PAN, em Portugal ou no estrangeiro, “tiveram fases de maior ou menos crescimento, de reflexão e debate de ideias, de estratégias e objetivos”.

O PAN, sob a atual liderança de Inês Sousa Real, tem enfrentado demissões e divergências internas
(Foto: Mário Cruz/Lusa)

O caso do Livre, que conta oito anos, feito de arranques e travagens, é paradigmático. Entrou no Parlamento pela primeira vez em 2019, envolto numa festa esfuziante, com a eleição de Joacine Katar Moreira, cabeça de lista por Lisboa. Mais tarde, retirou-lhe a confiança política e perdeu a representação parlamentar que acabara de conquistar. Apesar de todo o processo polémico e mediático, este ano, o Livre conseguiu voltar a eleger um deputado, o líder Rui Tavares. “Acreditávamos desde o início que havia espaço para um partido da esquerda verde europeia. E isso mesmo apareceu logo nas nossas primeiras eleições, em 2014, as eleições europeias, onde conseguimos 72 mil votos”, diz Rui Tavares.

Começou como partido sem subvenção, financiado pelos próprios membros, com voluntários a recolher assinaturas, “sem grandes doadores”, “com as campanhas mais baratas dos partidos desta geração, à volta de 10 mil, 12 mil, 15 mil euros”. Até chegar a partido de deputado único. Mas o processo de criar bases é longo, por patamares. O Livre tem três funcionários, “e é há pouco tempo”, vive do “amor à camisola dos cerca de mil membros e apoiantes”. As vicissitudes fazem parte, realça Tavares, até porque “a política é feita de pessoas com os seus defeitos e as suas qualidades”. E os holofotes mediáticos muitas vezes penalizam os mais jovens.

“Nos partidos pequenos e recentes, os erros chamam mais a atenção. Porque não houve tempo para se darem a conhecer. E porque, enquanto cresciam e faziam coisas admiráveis, não tinham atenção mediática. Quando as coisas correram mal, e imagina-se a grande desilusão que foi tomar aquela decisão, lembro-me de ter câmaras montadas à porta da sede, onde nem espaço havia para todos. E os eleitores têm tendência a lembrar-se só disso.” Os históricos, pelo contrário, são barcos muito grandes: “Mesmo quando cometem enormes erros políticos, caem sempre mais ou menos de pé. É simples, nos partidos pequenos, um erro que nos faça cair 1% é determinante. Nos grandes, perder 1% é uma margem de erro”.

No lado oposto, na extrema-direita, o partido que gravita à volta de André Ventura e que chegou a terceira força política do país – passou de deputado único em 2019 para grupo parlamentar de 12 em 2022 -, as polémicas e divergências amontoam-se. Mas, é certo, o Chega implantou-se num ápice, em três anos e meio. “Aconteceu porque desde o início a nossa lógica foi de implantação territorial. Não quisemos crescer só a nível parlamentar e nacional. Quisemos crescer a nível local. Isso teve riscos, na escolha dos candidatos, mas ao mesmo tempo permitiu-nos implantação autárquica”, refere Ventura, que reconhece que, “ao contrário do PS e PSD, que têm a rede montada, o Chega ainda está a tentar fazê-lo, mas ajuda muito ter quase 400 autarcas no país todo” (embora alguns já tenham saído do partido).

Rui Tavares, à frente do Livre, assume as dores de crescimento (desde logo no caso de Joacine Katar Moreira) num partido que ainda vive muito do “amor à camisola”
(Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)

O fenómeno do crescimento parlamentar, admite, “obrigou a um esforço muito grande de coordenação”. “Foi necessário multiplicar as vias de comunicação que não existiam quando eu era deputado único, aliás ainda estamos nesse processo.” Tanto que em tão pouco tempo já sofreu vários tumultos internos. Além de já ter posto o lugar à disposição de uma moção de confiança que viria a servir apenas para se relegitimar como líder, o terramoto de demissões dos dirigentes nos últimos meses é disso exemplo, incluindo vários autarcas, assim como a saída do chefe de gabinete, Nuno Afonso, ou o recente desentendimento a que se seguiu a reconciliação com Mithá Ribeiro, deputado e ex-vice-presidente do partido. “São dores de crescimento. Nunca houve na história de Portugal, exceto no período pós-revolucionário, um crescimento tão acelerado de um partido que de repente tenha tido que responder a tanta estrutura e a tantos militantes em tão pouco tempo.” E exemplifica: “Ao fim de ano e meio de vida, segundo as sondagens, já estávamos a responder perante 300 mil apoiantes. Nas presidenciais, conseguimos logo meio milhão de votos. Ganhámos protagonismo, internacional até, de forma muito rápida. Não houve tempo para consolidar”.

Ventura prometeu um processo de reorganização profundo dos vários órgãos. Mais do que fazer crescer o grupo parlamentar, quer chegar a Governo. As legislativas de 2026 estão na mira. E se o resultado for mau? “A liderança dos políticos está sempre à disposição. Assumo os resultados. Nesse caso, não tinha condições para ficar.” Mas o Chega não é partido de um homem só? “Estou convencido que, quando esse dia chegar, o partido vai continuar a crescer sem mim.”

Segundo o politólogo António Costa Pinto, e voltando à Iniciativa Liberal, ao contrário do que acontece com o Chega “que se corporiza na figura de Ventura, o eleitorado de crescimento da IL é constituído por jovens, na maior parte com nível educacional acima da média, que se identifica com o programa político e não vai na cantiga do líder mais ou menos carismático”. Não há lugares marcados no espetro político e os altos e baixos fazem parte. Resta saber se a IL, “mais popular” e com um novo líder, vai ser capaz de se consolidar na cena nacional. Só o tempo o dirá – e os próximos atos eleitorais.