
Levar ou não os mais novos aos rituais fúnebres, em que circunstâncias, a partir de que idade, o que fazer para os ajudar no processo. Um guia para pais confusos e angustiados.
Um familiar próximo que parte, o avô que foi como pai, a avó mais querida, o tio preferido, uma menina cabisbaixa, um menino em lágrimas, com seis, oito, dez anos, um funeral que se avizinha, uma dúvida inquietante e persistente a pairar sobre os pais: levar ou não a criança ao funeral? Se é pai, mãe, se a sua filha ou filho já percebe o que a/o rodeia e aí em casa já perderam alguém próximo, esta questão há de ser-lhe familiar. O texto que se segue é, portanto, uma tentativa de o ajudar neste processo, espécie de guia para lidar com estes casos, dando voz a quem acompanha de perto esta realidade.
Entre várias dicas que podem ser úteis, há uma basilar, que pode ser definidora: perceber o que a criança quer. “Se manifestar vontade de ir, isso deve ser tido em consideração. Até porque, em alguns casos, se afastarmos totalmente as crianças – e até os adolescentes – destes momentos, isso pode vir a condicionar e a dificultar o luto e o processo de transição que é preciso fazer quando se perde um ente querido”, sublinha Lia Moreira, pedopsiquiatra. O que não quer dizer que se dê aos mais novos via aberta para marcarem presença em todo o ritual fúnebre. A especialista dá até uma sugestão que pode funcionar como um saudável meio-termo. “Imaginemos um miúdo de oito anos que perde um avô, que sempre teve uma relação muito próxima com ele, que manifesta vontade em despedir-se dele: pode fazer sentido participar numa parte do velório, por exemplo, num momento reservado, em que esteja pouca gente.” Em que haja um ambiente mais controlado, portanto.
Mas não há aqui boas práticas universais, nem idades fixas. Dependerá sempre de uma multiplicidade de fatores. “Claro que isto só se aplica a partir do momento em que a criança começa a ter uma maior capacidade de abstração e, por consequência, de pensar na morte. Quando começa a ter uma noção mais real do que é. Em crianças muito pequeninas, que não têm noção nenhuma, faz pouco sentido. E depois, dependerá sempre da maturidade que apresentam.” E lá está, do “desejo expresso” de marcarem presença na despedida. Emanuel Santos, psicólogo habituado a trabalhar com crianças que atravessam processos de luto, também realça a diversidade de nuances a considerar. “Há várias dimensões que importa ter em conta. Desde logo o vínculo que se tem com a pessoa que faleceu, a explicação que se dá, a preparação que se faz. E sim, perceber e respeitar a vontade da criança.”
Um adulto que interprete e tranquilize
Na eventualidade de se decidir que os mais pequenos devem estar presentes no ritual fúnebre (ou numa parte dele, como sugeria Lia Moreira), há aspetos importantes a ter em conta. Desde logo, a necessidade de o menor ter por perto “um adulto próximo, que esteja emocionalmente estável, para poder transmitir a tranquilidade de que ele precisa”. E de haver uma conversa prévia. José Carlos Rocha, diretor clínico do Centro de Psicologia do Trauma e do Luto, detalha a questão. “É fundamental que esteja sempre presente um adulto que legende, que interprete, que explique o que está a acontecer, mesmo em termos emocionais. Além de que a criança deve ter informação prévia sobre o que se passou. Sobre os factos, sobre emoções que sente e que é natural as pessoas sentirem num processo de luto.” Ou seja, explicar exatamente o que vai acontecer, como é que o ritual se vai processar, o que a criança vai ver, as reações que é expectável que as pessoas presentes tenham.
Sempre com uma regra-chave, sublinhada por Emanuel Santos: “A verdade. É importante que fique sempre claro que o que está ali a acontecer é um momento de despedida. Como é importante que haja abertura para responder a todas as perguntas com honestidade. A criança poder expressar estas dúvidas é algo muito positivo porque permite que a experiência possa ser integrada do ponto de vista cognitivo.” Também José Carlos Rocha reconhece um certo potencial construtivo numa experiência destas. “Quando comparada com um adulto, há na criança um certo potencial de aprendizagem, uma possibilidade de aprender a lidar melhor com o luto, com a morte, com as memórias do ente querido que faleceu.”
Preocupante será sempre o oposto: não haver uma oportunidade para a despedida, esconder-se até a morte da pessoa querida enquanto se pode. Numa tentativa de proteção, claro. Mas que acaba por ser perversa. Emanuel admite que a questão é complexa, desde logo pela perturbação que causa à família, aos próprios pais da criança. E que, por isso, há muitas vezes uma tentativa desesperada “de minimizar o sofrimento da criança”. “Porque há esta ideia que o funeral é o momento em que o sofrimento mais está presente e tendencialmente assume-se que as crianças não têm ainda estrutura para estar presentes.” Mas a dedução é redutora, pode até ter efeitos altamente nocivos. “Nem sempre é assim”, alerta o especialista. “Tudo deve ser contextualizado.”
Desconstruir a morte
A questão remete-nos para outro ponto relevante, que se prende com a forma como devemos abordar e trabalhar o tema da morte junto dos mais novos. E aqui a chave será desconstruir e normalizar. “A educação para a compreensão da morte é algo que devia ser feito de forma integrada e natural”, diz Emanuel Santos. E dá um exemplo concreto. “Quando temos peixinhos em casa, se vemos que um morreu, o mais habitual é despacharmos o peixinho morto para a criança não o ver e substituirmos por outro.” O especialista considera que há uma explicação legítima para este comportamento. “É um tema muito difícil para os adultos e há uma tendência para se tentar hiper-proteger os mais novos disso. Mas é importante apresentar a morte dentro de um processo que é natural e dar competências para lidar com isso. Muitas vezes evita-se o assunto e os filhos só se deparam com o tema quando têm as primeiras perdas significativas, que comummente são os avós.” Emanuel defende uma estratégia distinta. “Ir permitindo que a criança tenha consciência de que há aqui uma finitude, de que a morte é algo natural. Mas claro, fazê-lo de forma a que o tema não se torne algo ansiógeno ou excessivo.” Nesta perspetiva, faz sentido contar à criança que alguém próximo faleceu usando expressões como “foi para o céu” ou “agora é uma estrelinha”? “Pode fazer, mas é preciso ter cuidado com as metáforas, porque podem criar uma ideia errada. É importante que fique sempre claro que se trata de algo irreversível, que a pessoa não vai voltar.”
Também Lia Moreira, pedopsiquiatra, destaca ser essencial ir esclarecendo as dúvidas que vão surgindo. Até porque o conceito da morte é uma construção. “Até aos três, quatro anos, não é sequer uma questão. Depois, a partir ali dos cinco anos, começa-se a ter uma noção de que a morte acontece, que é algo universal. Mas só com 10, 11 anos, é que se tem uma noção mais realista e aproximada do que é a morte, é que começa a surgir a angústia da perda.” A especialista ressalva, no entanto, que estas idades são apenas indicativas, dependerá sempre da maturidade e do processo evolutivo de cada um. O que deve ser universal é o princípio da transparência. “Quando fazem perguntas, deve-se responder sempre. Claro que se deve ter sempre em conta o interesse da criança e a sensibilidade da mesma, até para ajustar a explicação que é dada. Mas deve-se responder sempre com verdade. É mesmo muito comum mentir-se para se evitar o sofrimento. E isso acaba por ter reveses consideráveis.”