Rui Cardoso Martins

Aquilo que ouvi

(Ilustração: João Vasco Correia)

Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

A auxiliar de pediatria levantou-se do banco das testemunhas e sentou-se no fundo da sala. Os olhos de Catarina brilhavam, húmidos, extenuados com o seu caso. Cabelos arrancados, arranhões, uns óculos de 600 euros partidos no chão do Hospital Dona Estefânia (Lisboa). Regressara ao pior dos dias, quando uma mãe a atacou. A menina a chorar. Agora era a sua chefe a contar ao tribunal:

– A Natália era a mãe de uma criança que estava frequentemente internada, que se chamava Luísa, e passava muito tempo na nossa companhia. A mãe era visita e vinha durante os internamentos, a Luísa era uma doente crónica. Nesse dia, a Natália não dormiu no serviço, chegou perto da hora do lanche, já no início do turno da tarde, foi muito rápido, perguntou pelo lanche da Luísa, ao que a Catarina disse que já ia levar, que estava a limpar uma das crianças que tinha feito cocó e tinha sujado o vidro, a bancada, e eu lhe tinha pedido para ela limpar antes de fazer qualquer outra coisa. A senhora chegou e disse que queria o lanche imediatamente, ao que a Catarina respondeu: “Só um bocadinho, que eu vou acabar aqui de limpar e já vou buscar.” Natália saiu assim disparada e agarrou logo nos cabelos da Catarina e começou a bater, a puxar, pontapés…

– O que é que viu em concreto?

– Começou a sacudir a cabeça da Catarina com as mãos, e a Catarina não conseguia defender-se, não conseguia livrar-se das mãos da Natália, que continuava a agitar-lhe a cabeça e eu dirigi-me até às duas para tentar abrir as mãos da Natália. Não consegui, tinha muita força. O pai de uma criança que estava lá internada acabou por ouvir os gritos no corredor e, nós os dois, conseguimos separar a Natália da cabeça da Catarina. Entretanto, já tinham caído os óculos da Catarina no chão, estava o chão cheio de cabelos, e a cara tinha assim umas escoriações, aparentemente das unhas da Natália. Também havia cabelos nas mãos da Natália.

– Viu-a em algum momento a empurrar?

– Sim, sim, empurrou. Ela já se aproximou com um tom bastante agressivo, a perguntar pelo lanche e a Catarina quando respondeu que “agora não, só um bocadinho, deixe-me só aqui limpar isto”, a Natália deu-lhe logo ali um empurrão, por trás. “Porque é que não pode ser agora?!”

– Apercebeu-se se ficou com dores, com alguma lesão?

– Ela ficou com dores. Queixou-se logo e via-se perfeitamente, na altura, que ela ficou extremamente enervada, até porque não estava à espera, nunca tinha acontecido ali naquela unidade uma coisa como aquela. É uma unidade muito específica, uma espécie de cuidados intensivos de doentes crónicos, onde as crianças estão frequentemente connosco, a maioria daquelas crianças tem-nos a nós, equipa, como pessoa mais próxima, porque muitos pais fazem uma espécie de visita. Estão lá, às vezes vão… São doenças muito prolongadas, acabam por ter uma outra vida fora, que é o caso da Natália, da mãe da Luísa, que tinha mais três filhos, ia acompanhando cada vez menos a Luísa nos internamentos. E tudo isso foi feito tentando que não se fizesse muito barulho e não se chamasse muita atenção com a Polícia… É um internamento pediátrico.

Acabou a sua memória e, porque faltava uma testemunha, adiou-se a audiência. Naquela ala, os meninos e meninas nasceram com o intestino demasiado curto. Disseram-me que, depois do almoço, houve uma criança que defecou tanto que foi fralda, foi cama, foram os lençóis, foi tudo o que ali estava à volta. A enfermeira foi chamar a auxiliar e pediu para ir ajudar a mãe que estava a lavar o menino. A arguida entrou pelo quarto aos berros a dizer que queria o lanche da filha. Já teria passado uma hora normal do lanche, e isto porquê? Porque a mãe tinha ido dar um passeio à rua. E o que a auxiliar lhe disse foi que as ordens que têm são que, com as crianças que comem normalmente, elas entregam o lanche aos pais e os pais é que o dão. Há muitas crianças que recebem por via intravenosa, pela via de tubagem. “Espere um bocadinho que eu já lhe vou dar o lanche, que eu agora estou aqui com as mãos como a senhora vê e estou a ajudar a mãe a mudar a criança.” Mal virou as costas, levou um empurrão e um puxão pelos cabelos.

Natália, mãe de Luísa, não apareceu no tribunal. Disseram-me ainda, no fim:

– Por aquilo que ouvi, e me apercebi, essa criança já faleceu.

A minha voz escorregou e caiu. Ainda se está a levantar. Pequenos doentes crónicos. Mudei os nomes da menina, da mãe, de todos.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)