Rui Cardoso Martins

Ao vivo de Tenerife


Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

Eu vivo em Tenerife, no Paseo Peatonal de Madrid, disse Júlio. Aliás, calle, calle de Madrid, corrigiu Júlio. Em Los Cristianos. É onde ele está.

Coisa mais espanhola, o destino de Júlio… Até a voz chegava ao tribunal de Lisboa, a 1400 quilómetros, soando no tom metálico, áspero, um pouco acornetado – é a verdade – que o castelhano original exige aos aparelhos vocais dos nativos. Mesmo que exportado para ilhas vulcânicas no Atlântico, a poucas braçadas de África.

Mas Júlio é de cá, nativo português. Então o que faz lá, em Tenerife, e o que fez ele para estar a ser julgado por telefone desde o Campus de Justiça? Antes de mais, as possibilidades técnicas e a maior elasticidade processual. Hoje acontece o que era impensável: um arguido ausente, contumaz, pode ser julgado in absentia, ou melhor, presente mas desde lá longe nas Canárias, basta sentar-se meia hora para conversar ao telemóvel e pronto.

– Senhor arguido, começou a juíza, o senhor está aqui a ser julgado porque no dia 8 de Outubro de 2013, pelas 8.26 horas, o senhor conduzia o veículo automóvel de passageiros com a matrícula (…) pela Praça José Queirós, nesta cidade e comarca de Lisboa, sem ter carta de condução válida ou documento equivalente que o habilitasse a conduzir aquele veículo.

Júlio “agiu determinado por vontade livre e consciente, bem sabendo que toda a sua descrita conduta era proibida”. Condução ilegal.

– Senhor arguido, isto é verdade?

– Está correcto.

– Sim senhor, disse a juíza, virando-se para a direita: senhora procuradora, precisa de esclarecimentos?

– Sim, se entretanto já tirou a carta…

– Senhor arguido, esclarecimentos a pedido da senhora procuradora: o senhor entretanto já tem carta de condução?

– … não, não…

A voz de Júlio agora parecia soprada pelas areias do Saara.

– Ainda não. Senhor arguido, quando o senhor disse, de uma forma livre e espontânea, que o que consta da acusação é verdade, ninguém o obrigou.

– Correcto.

2013. Júlio tinha em Portugal outros sarilhos: um roubo, dívidas, maus negócios, outra condução ilegal. Apontou às Canárias e desapareceu no ar. Anos sem ninguém saber dele. Diz-se na Wikipédia: “Tenerife é a maior das ilhas Canárias espanholas, perto da costa da África Ocidental. A ilha é dominada pelo Monte Teide, um vulcão adormecido que é o ponto mais alto da Espanha. Tenerife tem muitas praias (com areias de cor amarela a preta) e balneários, como Los Cristianos e Playa de las Américas”.

Júlio está portanto numa bela praia a ser julgado (e condenado a pena de multa). Às vezes, os paraísos dão meia-volta. Em La Palma, outra das ilhas do arquipélago, a erupção do vulcão Cumbre Vieja durou 96 dias de destruição que só foram dados como extintos no Natal de 2021. Três meses de lava, medo, evacuação de sete mil pessoas. A boa notícia: A teoria existente desde 2001 sobre o possível colapso da caldeira e megatsunami com uma onda de 25 a 100 (!) metros de altura – que iria destruir o Recife e Nova Iorque, isto é, toda a costa da América – passou à categoria dos exageros da imaginação científica.

O vulcão de Júlio é outro, também real e enorme. “O Teide é um vulcão situado na ilha de Tenerife (Ilhas Canárias-Espanha). Com uma altitude de 3718 metros e aproximadamente 7500 metros de altura sobre o leito oceânico, é o pico mais alto da Espanha, e das ilhas do Atlântico. É também o terceiro maior vulcão do Mundo a partir de sua base. O Teide é um estratovulcão do tipo estromboliano. Para os indígenas das ilhas Canárias (os guanches) este vulcão tinha o nome de Echeyde (que depois de uma castelhanização deu o nome atual) que significava inferno.”

Para inferno, podia ser pior. Disse Júlio, o ex-contumaz:

– Eu tenho tentado aqui recomeçar a minha vida.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)