Valter Hugo Mãe

Amigos imaginários


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Na minha eira aparece uma santa que só faz milagres. Faz milagres em troca de qualquer sorriso limpo. Durante as tardes de sol, ela aparece e fica longamente porque não tem outra tarefa senão a de fazer o bem a quem por ali vai.

As casas grandes e muito antigas não são mesmo lugares comuns, tornam-se gente, suspeição de presenças, companhias. Os amigos perguntam por fantasmas, mortos nas cortes, o diabo na eira, as vozes no baixo e no cimo dos quartos. Não há nada. A casa é quieta e não acontece nada senão uma vegetação sempre a crescer, mais os gatos vadios, abelhas no funcho e pássaros que não descem. Mandaram-me plantar um diospireiro. Os dióspiros chamam os bandos.

O imaginário do Minho é todo feito para assustar o povo, provavelmente para lhe tolher os gestos, criar pudor, motivar ao comezinho, à humildade e ao trabalho. Quase sempre a mitologia popular vai no sentido de precaver personalidades excêntricas e punir o que não cumpra o senso comum. Por mais que me divirta e até inspire para livros, cansa-me bastante que se perpetuem ideias que castram alegrias e parecem criar aflição onde já basta que exista o desafio constante da sobrevivência.

Na minha eira aparece uma santa que só faz milagres. Faz milagres em troca de qualquer sorriso limpo. Durante as tardes de sol, ela aparece e fica longamente porque não tem outra tarefa senão a de fazer o bem a quem por ali vai. Em troca da hipótese de vir o diabo nas noites de agosto, eu prefiro esta de se oferecerem milagres, coisas de maravilha que não estejam para piorar a vida das pessoas, muito ao contrário. Eu disse: a minha casa é para fabricar felicidade. Não quero que entrem com medo de fantasmas, bocas que ferram ou insultam. Quero que entrem com a oportunidade da cura.

Alguém dizia para cuidar do olhado. Ai, o olhado. Explicam-me. Há olhado em toda a parte. Eu só vejo trabalho. É o que mais vejo. Mas não me parece nada maldição. É de andar o mundo sempre a imaginar coisas novas, haver plantas e bichos e tudo precisar de moderação e limpeza. Arranjei um amigo cada vez mais imaginário, o Mosquitinhos. Ele mexe em toda a parte. Apara a oliveira e conta-me que as oliveiras devem ser podadas com severidade. É bom que se libertem do peso, mais ainda se forem assim centenárias. Eu estou convencido de que a árvore tem duzentos anos. Digo: Mosquitinhos, como sabes voar, podias ir cortar bem lá em cima, que a mim dão-me vertigens dois degraus do escadote.

O Mosquitinhos é que tirou da cabeça que devíamos pôr água aos gatos vadios, que não há muito onde vão beber em segurança. Eu tenho a impressão de que o Mosquitinhos é que motiva a santa a ficar pela eira. Coisas boas vêm de pessoas boas. Até a maneira como o vento sopra se educa. É o que me interessa nas casas grandes, muito antigas. Que se eduquem para as coisas boas. Vivos e mortos bons. O que a vida e a memória fazem é sempre um negócio da consciência.

Hoje, treze estrelícias abriram mais do que nunca. Curioso. Outubro. Não acreditaria facilmente que a 2 de outubro tudo propenderia a ser feliz outra vez. Acredito agora.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)