Álvaro Magalhães: “Só devíamos deixar de ser crianças quando morrêssemos”

Criador de algumas das mais populares séries juvenis da nossa literatura, Álvaro Magalhães continua encantado com a escrita e as suas infinitas possibilidades. Retrato de corpo inteiro de um “inventor” nato.

Já nos fez rir vezes sem conta com personagens como o Vampiro Valentim, Picasso e van Gogh ou, mais recentemente, o Estranhão. Mas também já nos guiou pela Mata dos Medos, deu-nos a conhecer os diários secretos da mãe do melhor do Mundo, fez com que vibrássemos com os feitos d’Os Indomáveis e colocou-nos no encalço do Jorge, da Joana e do Joel, os três adolescentes que protagonizaram a marcante coleção de aventuras Triângulo Jota.

Álvaro Magalhães, autor indissociável da literatura para a infância e juventude, está a assinalar quatro décadas de uma atividade literária que, em bom rigor, já tem 71 anos. Tantos quantos tem de vida, afinal, este portuense tranquilo, que continua a escrever pela noite dentro com o entusiasmo infantil de sempre e a omnipresente companhia dos seus adorados gatos.

Muitos anos antes de publicar o seu primeiro livro, “Histórias com muitas letras”, já o pequeno Álvaro era capaz de estar um dia inteiro sozinho à volta de uma só brincadeira, o que até chegou a preocupar os pais, recorda o escritor, “convencidos de que eu tinha algum problema”.

A descoberta da escrita foi um momento definidor da sua vida. Quando se apercebeu de que, ao juntar palavras, era capaz não só de descrever estados de alma profundos, mas também dar vida a personagens de todos os géneros e feitios, entrou num estado de encantamento pela escrita que persiste até hoje.

“Lembro-me que, com 13 anos, escrevia poemas e já me interrogava sobre até que ponto esses textos eram verdadeiramente poéticos. A minha consciência sobre o ato da escrita já estava muito desperta e fez-me ter a certeza de que era mesmo isso que procurava. A escrita não foi uma escolha; foi uma condição. Ao fim destes anos todos, continuo convencido de que é a literatura que nos escolhe e não o contrário”, reforça.

O gosto precoce revelado pelas palavras não significa que fosse um aluno exemplar. Com a Matemática nunca simpatizou por aí além, o mesmo se passando com a gramática. Desde cedo embirrou com tudo quanto envolvesse divisão de orações ou outras formas de dissecar um texto literário. Era sobretudo nas redações que se evidenciava. Não raro, os professores, desconfiados com a forma como um miúdo avesso à teoria era capaz de criar histórias tão arrebatadoras, abeiravam-se de si para saber o significado de determinado texto. “Ficava tão pouco à-vontade que nem sabia o que lhes responder”, rebobina.

Tantos anos depois, continua convencido de que “o encontro com a literatura tem que ser como um encontro amoroso, ou seja, não pode ser precipitado, já que os arranjinhos por norma correm mal. Não se ensina ninguém a gostar de ler à força. Tem que ser algo livre. Ou é pelo prazer ou não é de todo. Os bons mediadores de leitura são aqueles que conseguem transmitir a paixão”.

Nem só de histórias, livros e escrita foi habitada a sua infância, vivida na Rua de São Dinis, na freguesia de Paranhos. Como era tão comum nesses tempos, os dias eram passados ao ar livre, em correrias infindáveis atrás de uma bola ou a brincar aos cowboys, então muito em voga. Bem presentes ainda em si estão as imagens de um Porto rural, ao qual não faltava sequer “um vizinho que era lavrador e até tinha um boi”. Não raro, as animadas partidas de futebol em que participava com entusiasmo constante tinham que ser interrompidas, “para deixar passar um carro ou uma carroça de bois”.

“Nós, os que escrevemos, só fazemos metade do trabalho, porque o texto apenas se cumpre quando é lido. É no leitor que ele encontra sua referencialidade”, reconhece o escritor

Ao comparar a meninice desse tempo com a atual, as certezas tomam conta de si. Pelos exemplos que lhe chegam, sobra-lhe a convicção de que a infância é cada vez mais curta, devido à repressão da brincadeira que é exercida desde muito cedo: “Só devíamos deixar de ser crianças quando morrêssemos. Os cães e os gatos brincam até morrer”.

Para Álvaro Magalhães, “a brincadeira é uma coisa muito séria”. Leva-a tão a peito que nem hesitou quando teve que criar um título para uma coletânea de poemas extraídos de livros como “O limpa-palavras” ou “Isto é que foi ser!”, agora reeditada por ocasião das comemorações dos 40 anos de vida literária: “O brincador”. “É verdade que continua a ser uma boa síntese da minha poesia e do que faço, mas também de mim próprio”, assume.

Aliada à capacidade de brincar, surge outra dimensão que acompanha o autor – a capacidade inventiva. Na literatura e fora dela. Se os mais de 120 títulos publicados dizem bem da sua capacidade efabuladora, há muitos outros exemplos que demonstram que o ato de inventar “é como respirar e comer”.

Mal tinha saído da adolescência, já o jovem Álvaro planeava e criava jogos lúdicos ou didáticos que, de seguida, ia apresentar à Majora ou outras empresas do género.

Com a televisão passou-se o mesmo. Quando as grandes produtoras internacionais responsáveis pelos “reality shows” eram ainda uma miragem, Álvaro Magalhães propôs à RTP vários formatos de sua autoria, de concursos a “talk shows”. Alguns deles, como “Avós e netos” ou “A ilha do tesouro”, envolvendo figuras como Luís de Matos ou Manuel Luís Goucha, chegaram a ir para o ar. O interesse pela televisão manifestar-se-ia novamente poucos anos depois, desta vez na escrita de séries – quem não se lembra, por exemplo, de “Os Andrades”? -, a maioria na companhia de Manuel António Pina, amigo maior de uma vida recheada como poucas.

Tamanha versatilidade pode causar estranheza num meio, como o literário, onde a especialização tende a ser uma inevitabilidade. Mas não para o escritor. Seja uma crónica para o diário desportivo “O Jogo”, uma comunicação para um colóquio de académicos sobre a obra de Luís de Camões, como aconteceu há poucas semanas, ou uma peça de teatro para crianças, a base a partir da qual cria é sempre a mesma: a invenção.

Opinião parecida teve Manuel António Pina quando escreveu um artigo sobre a sua obra para crianças, a que deu precisamente o título de “O inventor”. “Não me importava nada que me chamassem isso em vez de escritor”, resume.

Sempre que, nos momentos de maior dúvida, pensa na utilidade da escrita, há um poema de Marguerite Duras (incluído no volume “É tudo”) que vem em auxílio de Álvaro Magalhães: “Escrevi durante uma vida inteira / Como uma imbecil, fiz isso / (…) Escrever durante uma vida inteira ensina a escrever / Mas não salva de nada”. Apesar de toda a admiração que nutre pela escritora francesa, o prolífico autor discorda. Afinal, sustenta, “a escrita salvou-me de muitas coisas, a começar pela realidade”.

Não será por mero acaso que, nos seus livros, por muito diferentes que sejam, existe uma tendência nítida para uma procura do outro lado, uma espécie de realidade alternativa onde a vida é tão ou mais importante do que na realidade convencional. Foi o que se passou, aliás, no próprio percurso pessoal do autor. Quando começou a publicar, aos 32 anos, era funcionário do Ministério da Justiça. Esmagado pelo peso da burocracia, encontrava no sonho e na escrita uma fuga ideal, o que fazia com que “fosse frequentemente apanhado a datilografar poemas à má fila”, recorda, divertido. Aos 40 anos, pôde, por fim, dedicar-se o dia inteiro (ou a noite inteira, para sermos mais exatos) à tarefa de escrever para os mais novos, deixando para trás as agruras de um emprego a que nunca conseguiu habituar-se.

Para trás também já tinha ficado, nessa altura, a edição e a escrita de poesia. Entre o final dos anos 1970 e o início da década seguinte, criou e dirigiu a Gota de Água, editora que, não obstante o seu caráter artesanal, publicou autores que viriam a ser de referência, como António Franco Alexandre, António Osório ou Al Berto.

Enquanto leitor, o fascínio pelo género poético ainda hoje está intacto, mas a escrita passou a pertencer ao foro privado, “uma coisa comigo mesmo”, como diz. Parte desse desencanto instalou-se quando se apercebeu de que “a poesia é um mundo infeliz”: “Os poetas não têm leitores. Quem os lê são os outros que também escrevem, o que cria uma certa infelicidade. Nós, os que escrevemos, só fazemos metade do trabalho, porque o texto apenas se cumpre quando é lido. É no leitor que ele encontra sua referencialidade”.

A descoberta da literatura infantil aconteceu nesse período, impulsionada por dois nomes que faz questão de destacar. Manuel António Pina, o autor que “trouxe a modernidade a este género”, e a escritora Ilse Losa, a sua primeira editora, na ASA, cujos estímulos foram decisivos para que tenha resolvido dedicar-se à escrita para os mais novos. Melhor começo não poderia ter tido, já que os seus primeiros cinco livros conquistaram outros tantos prémios atribuídos pela Associação Portuguesa de Escritores. “Acabaram entretanto com o prémio, porque era sempre o mesmo a ganhar”, graceja.

Impulsionada pelo nascimento da sua filha, a escrita para a infância tornou-se uma certeza a partir do momento em que comprovou que, ao contrário do que pensava, ela não está assim tão distante da poesia. “Ambas exigem a condição do espanto e da ignorância. O espanto obriga a que nos surpreendamos em permanência, enquanto a ignorância também é importante. Trata-se de desaprender, levar a língua até à sua infância. Como escreveu a Wislawa Szymborska, o poeta que é genuíno deve responder constantemente ‘não sei’.”

Desses anos iniciais ficaram na sua memória as dezenas de idas a escolas de várias regiões e sobretudo a reação de um jovem aluno de Bragança, estupefacto com a circunstância de haver escritores… vivos. “Para ele, todos os escritores já estavam mortos”, evoca. A rotina foi-se tornando cada vez mais espaçada desde que os professores começaram a justificar os convites com a necessidade de desmistificar a figura dos escritores. “Uma vez, perguntei-lhes o que têm contra os mitos, que são tão importantes, como sabemos”, ironiza.

Nos últimos anos, as idas a escolas tornaram-se ainda mais raras, em grande parte devido aos contornos “puramente mercantis” que rodeiam as visitas dos escritores aos estabelecimentos de ensino, com as editoras a exigirem previamente a venda antecipada de um número avultado de livros. Ao tomar conhecimento de que hoje há muitos autores que não só vão às escolas ler os seus livros como também fazem, por vezes, acompanhamento musical, o criador do “Estranhão” questiona-se “se não estará perto o dia em que irão fazer o pino”, comparando essas visitas com as rondas que os antigos vendedores de enciclopédias faziam.

“Não se ensina ninguém a gostar de ler à força. Tem que ser algo livre”, garante Álvaro Magalhães

Em 40 anos, quase tudo mudou no segmento infantil. Cada vez mais profissional e dotado de condições inimagináveis ainda há poucas décadas, quando os dedos das duas mãos chegavam e sobravam para contar as editoras existentes e não havia livrarias especializadas, festivais temáticos ou mediadores de leitura especializados. Mas nem tudo mudou para melhor, afiança Álvaro Magalhães, crítico do excesso de obras infantilizadas e com um enfoque exagerado na pedagogia – “como se a literatura servisse para ensinar”, diz – em detrimento de uma aposta na imaginação. Ainda mais negativa é a sua opinião sobre a perda de protagonismo da palavra, cada vez mais subordinada ao peso da imagem. De mero apêndice, as ilustrações ganharam uma importância que considera excessiva: “Basta dizer que há um Prémio Nacional de Ilustração, mas não existe um equivalente ao texto. Não nos esqueçamos que a literatura é feita de palavras”.

Hoje, com o passar dos anos, muitos dos seus leitores iniciais passaram esse ‘bichinho’ para os seus descendentes e cumprimentam-no efusivamente quando o encontram. Mesmo que seja num consultório, onde os outrora pequenos leitores são hoje médicos, o que não os impede de falarem de forma apaixonada sobre as aventuras do Triângulo Jota lidas há mais de duas décadas.

Os tão habituais balanços ou exercícios retrospetivos que os criadores fazem quando comemoram uma efeméride qualquer são um luxo a que Álvaro Magalhães não se pode dar. Antes de mais, porque os leitores continuam a exigir-lhe mais e mais livros. “Por vezes, faço sentir à minha editora que gostava de parar com determinada coleção mas, sempre que isso acontece, chegam logo pedidos para continuar. É a melhor gratificação que um escritor pode ter.”

Se os livros escritos já ultrapassaram há muito a centena, existe um ritual de que ainda não abdica. Sempre que um novo exemplar de sua autoria aterra na secretária, contempla-o e folheia-o demoradamente, “como se estivesse a lamber a cria”.