Rui Cardoso Martins

Ai, ali é mau?

Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins

Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

A mulher era testemunha mas enganou-se e entrou a correr pelo gradeamento do banco dos arguidos.

– Não quer ir para ali, garanto…

– Ai, ali é mau?, perguntou a mulher.

– Ali é mau, confirmou a juíza.

A mulher deu a volta mas continuou desastrada.

– Jura dizer a verdade?

– I swear.

– Tem de dizer em português, suspirou a juíza.

Talvez a testemunha estivesse à espera de ver um martelinho americano de madeira na mão da juíza. Mas não há martelinhos de abrir santolas e sapateiras nos tribunais de Portugal.

– Eu juro, corrigiu a mulher.

Depois contou que era gerente num restaurante na “linha de chefs de cozinha” do Mercado da Ribeira. Sobre o arguido, aquele que devia estar sentado agora na linha dos arguidos, no banco atrás dela, mas que não apareceu, disse que o “conhecia pessoalmente, do trabalho”. É preciso adivinhar, no entanto, que tipo de trabalho e de vida Pedro pensava vir a ter, pois não se encontra uma linha “racional” no seu comportamento, uma ideia com sentido. Algures existiu um enorme erro de cálculo. Começou muito bem:

– Fiz várias entrevistas de emprego e contratei o Pedro para ser o meu braço -direito como gerente de loja.

– Isso era o quê?

– Era basicamente para me representar quando eu não estava.

Tudo com contrato assinado por Pedro, com regalias. Teria a prazo uma carreira sólida num estabelecimento conceituado em que, num só almoço de sábado, podiam entrar seis mil euros na caixa. Havia dois cofres lá atrás: um central, ao qual ninguém tinha acesso – a não ser o dono e a gerente -, e outro mais pequeno onde estava o dinheiro que entrava no dia, mais um fundo de caixa. Era onde ficavam as moedas e os dinheiros para “mudanças de turno”.

Agora, a mulher na cadeira das testemunhas abria as mãos para melhor explicar a enorme surpresa: estava a gostar de Pedro e da sua competência, nesse mesmo dia ia oferecer-lhe o acesso às contas bancárias, iam os dois fazer em conjunto o primeiro depósito das caixas, passando para Pedro as suas responsabilidades de gestão. Ela chegou ao restaurante pelas dez da manhã, esperando que Pedro chegasse mais tarde. O chefe de cozinha disse-lhe: “Olhe que o Pedro já cá está”. Entrou na zona das caixas e Pedro já não estava. Ligou-lhe, ligou-lhe e nada (até hoje).

– Abri o cofre e percebi imediatamente.

Deviam lá estar cerca de 2500 euros em moedas. Tinha sido um jantar fraco, na véspera.

– E era um dia mau…

A mulher abanava a cabeça, juntando as peças, as perguntas que Pedro tinha vindo a fazer aos colegas sobre os cofres. Agora lá estava ele, filmado pela videovigilância, torcendo-se na copa para furtar o dinheiro do cofre.

Será detido e apresentado a tribunal, ordenou a juíza. Mas também a mulher já deixou aquela empresa.

Estamos sempre a aprender que as nossas ideias sobre o que é de esperar, e o que não faz sentido, pouco ou nada têm a ver com a realidade dos outros. Por exemplo, Vladimir Putin está agora como fígado fresco para a história da racionalidade e da irracionalidade humana: esperávamos dele, no “Ocidente” que, sendo implacável, seria sempre “frio e astuto”. Assim, adivinharia algures as consequências económicas, psicológicas, nacionais e mundiais de uma invasão sangrenta da Ucrânia. Mas agora é provável, e até evidente – nisto pego na análise do historiador Timothy Snyder -, que nem passe pela cabeça de Putin que a paz e a prosperidade sejam, por assim dizer, valores que valham a pena. A democracia não o é, decerto, como tirano e assassino, antes acreditando racionalmente ser muito mais importante entrar na História como figura inesquecível, o restaurador do orgulho imperial russo, nem que isso signifique assassinar milhões de pessoas e destruir o seu próprio país. Para tal basta-lhe, além das armas convencionais, das proibidas e das atómicas, ter um aparelho de propaganda e de repressão interno cuja força nem os próprios russos haviam ainda imaginado (e agora acreditem em mim, vosso cronista, que em trabalho jornalístico e literário estive na Rússia por três vezes nos últimos cinco anos, onde conheci muitos russos democratas: nem um esperava uma desgraça desta amplitude).

Agora podemos dizer sem dúvidas sobre o Kremlin: ali é mau.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)