Margarida Rebelo Pinto

Agustina para sempre


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

Numa entrevista perdida no tempo, retive uma frase que há duas décadas me acompanha e protege: apoia-te sempre, nunca te agarres.

A escritora Agustina Bessa-Luís completaria 100 anos esta semana, no passado dia 15 de outubro. Deixou-nos a 3 de junho de 2019, três dias antes do meu aniversário. Não éramos propriamente amigas, embora de vez em quando conversássemos por telefone, ou em eventos literários. Eu endeusava-a, ela achava-me uma menina mimada e traquina. Dizia por graça que em comum tínhamos o Colégio das Doroteias e, mais tarde, que eu tinha jeito para apanhar a voz das pessoas que passam na rua. Mergulhei cedo na sua escrita graças a uma bendita imposição de programa escolar com “A Sibila” que se revelou um labirinto, por ser tudo tão novo, original e diferente. É comum dizer-se que cada escritor tem a sua voz própria. A voz de Agustina não tinha comparação com nenhuma outra que já lera. Era difícil, intricada, misteriosa, usava vocábulos que eu desconhecia, mas não era opaca nem chata. Era um génio. Trinta anos depois, sempre que leio ou releio um dos seus romances, sou inundada pelas mesmas sensações. E sim, ainda aprendo novas palavras. A sua obra está aí para nos desafiar até ao fim das nossas vidas.

Uma das vertentes que mais me apaixona na sua obra é a forma como olha para o amor. Em “Doidos e amantes”, publicado em 2005, Agustina romanceia o trágico destino de Maria Adelaide Coelho da Cunha, compulsivamente internada a mando do marido e cujo amante, o motorista, foi preso durante quatro anos. Episódios que retratam o poder masculino e os respetivos abusos que dele decorrem sob um estado patriarcal e castrador, no qual a liberdade amorosa se paga num hospício ou no cárcere. Quando Agustina está a falar de amor e de desejo, usa-o como expressão de liberdade feminina. O desejo amoroso é o motor do amor, o amor é uma forma de sobrevivência e um exercício que incita à liberdade. Sob uma pena cerebral e profundamente analítica que pode parecer à partida desprovida de compaixão, Agustina é afinal uma admiradora da visão romântica do amor, à qual assiste de camarote. Sobre Camilo Castelo Branco escreveu: “Quando o coração me falha neste dialeto de escrever livros, volto-me para Camilo, que é sempre rei, mesmo em tempo de ciclopes”.

Todos os escritores se refugiam e se aninham secretamente nas páginas dos seus pares, quando o trabalho não flui. É o que faço com a sua obra, que me embala como um berço e me dá colo nos dias mais áridos da minha existência (e insistência) no meu ofício. Dela vou recolhendo nos meus caderninhos de secretária frases, ideias e considerações que se revelam janelas, paisagens e ensinamentos. Para além da sua mestria e génio, admiro-lhe a lucidez de nunca se levar a sério e alguns truques para sobreviver ao tsunami amoroso. Numa entrevista perdida no tempo, retive uma frase que há duas décadas me acompanha e protege: apoia-te sempre, nunca te agarres. Tão simples e sábio, como quem manda tomar uma colher de óleo de fígado de bacalhau ou comer gemadas para fortalecimento do organismo.

Noutra entrevista, já na sua velhice, disse: é impossível não amarmos alguém, isso não existe. É profundamente sábio admirar os românticos sem o ser, conseguindo uma visão de camarote de uma ópera que nos faz chorar. A cabeça e o coração sempre ligados, no frágil equilíbrio que apenas a grandeza de alma alcança, apoiada por esse fio de realidade a que chamamos bom senso.