Afinal, o que ganhamos com a vingança?

A vingança vai muito além da esfera individual, funcionando até como motor da própria História

Espécie de “instinto de preservação” do ser humano, está associada a uma certa sensação de prazer que frequentemente dá lugar a sentimentos mais sombrios. Desempenha um papel fundamental na própria História.

A resposta torta que andou ali a cozinhar dias a fio, à espreita da melhor oportunidade, o encontro a que se acede a ir só pelo perverso prazer de deixar o outro plantado, a foto que se partilha nas redes sociais só para fazer pirraça ao ex, o boato que subtilmente se vai alimentando para ferir quem um dia nos feriu, o risco que se faz no carro de quem nos humilhou. Se nenhum destes episódios lhe é pelo menos vagamente familiar – seja ou não o leitor o autor de tais maldades -, é bem possível que viva isolado do Mundo, num qualquer gueto onde a dinâmica social não chega. Vem isto a propósito da vingança, esse ato malévolo de que dificilmente nos reivindicamos autores, mas que somos obrigados a reconhecer como parte integrante da vida em sociedade. Isso mesmo nos lembra Jean-Martin Rabot, professor de Sociologia da Universidade do Minho. “A vingança sempre existiu, é transversal a toda a sociedade, é uma forma de expressão constante na vida dos homens.” Um instinto inato? Cathia Chumbo, psicóloga, tende a concordar. “Podemos considerar que sim, quase como se falássemos de um instinto de preservação. Todos nós revelamos uma tendência inata a retaliar a dor, o mal-estar e o sofrimento que nos causam. Podemos analisar quase como um binómio de ação-reação. Se nos agridem, sentimos necessidade de retaliar.”

Catarina Fernandes, neuropsicóloga, ajuda-nos a dissecar este ímpeto tão perverso quanto inato. “Claramente, sentimentos negativos em relação a outra pessoa, tais como a sensação de injustiça, a raiva, a rejeição ou a superioridade por parte do outro podem levar a um comportamento de vingança”, começa por esclarecer. “Uma pessoa que se sente injustiçada vê na vingança uma forma de ser feita justiça, provocando no outro o mesmo sofrimento que sentiu.” Como uma forma de responsabilizar a outra pessoa “pelo sofrimento que causou”. Mas, afinal, de que se alimenta a famigerada vingança? E porque pode ser tão apetecível? A culpa é do prazer. Ainda Catarina Fernandes com a palavra. “De facto, a vingança pode provocar uma sensação de prazer em quem a pratica. A prova disso são os resultados de alguns estudos na área das Neurociências que se têm dedicado ao estudo da empatia e de comportamentos de vingança. Por exemplo, um estudo realizado em 2006 por Tania Singer [reputada psicóloga alemã] e seus colaboradores concluiu existir uma correlação entre o desejo de vingança e áreas cerebrais como o córtex orbitofrontal e o núcleo accumbens, muitas vezes relacionadas com a tomada de decisão e com a recompensa.”

Amadeu Quelhas Martins, professor de Neurociências na Universidade Europeia e membro da Unidade de Investigação em Design e Comunicação do Instituto de Arte, Design e Empresa (UNIDCOM/IADE), detalha alguns estudos já realizados. “Faz-se uma espécie de jogo, em que os confederados, que no fundo são participantes do estudo que ‘estão feitos’ com os investigadores, vão insultar ou fazer batota para provocar os restantes participantes, monitorizados através de ressonâncias magnéticas ou encefalogramas. No caso dos participantes que têm vontade de se vingar, o encefalograma mostra [e no caso dos estudos que recorrem a ressonâncias magnéticas os resultados são semelhantes] que há uma maior amplitude associada ao reforço.”

Mas a lógica não é tão linear quanto possa parecer. E o prazer inicial tende a dar lugar a outros sentimentos, bem menos… prazerosos. “Quem pratica a vingança tem a ideia de que no final vai ficar aliviado e que apenas o outro vai sofrer. E embora numa primeira fase possa ser verdade, a longo prazo, o indivíduo que praticou a vingança acaba por sofrer mais, apresentando muitas vezes consequências psicológicas e até físicas, porque acaba por espelhar em si mesmo a dor e sofrimento que pratica no outro”, releva Catarina Fernandes, lembrando que quem possui um sentimento de vingança para com outra pessoa acaba por se “desligar” da sua própria felicidade para “concentrar todas as suas forças e atenção nos comportamentos vingativos” que têm por objetivo provocar um sofrimento no outro. Com óbvias repercussões no bem-estar próprio.

Não saber lidar com as emoções

Mas a personalidade também entra nesta equação. “As pessoas mais impulsivas tentam logo partir para a ação, têm uma resposta mais imediata. Já os mais reflexivos mobilizam e mentalizam a raiva, que acaba por ser canalizada para um plano de vingança.” Daí a velha máxima de que a vingança é um prato que se serve frio. Por ser algo meticulosamente calculado e premeditado. Catarina Fernandes também chama a atenção para esta questão da personalidade. “Muitas vezes, por detrás de um sentimento de vingança estão pessoas que não sabem lidar com as suas próprias emoções e, por isso, ao invés de realizarem este trabalho interno de equilíbrio emocional, acabam por atacar o outro indivíduo, que definem como culpado do seu mal-estar.” Cathia Chumbo, psicóloga, acrescenta que “há determinados traços que poderão predizer uma tendência mais elevada para o ato de vingança ou agressão”. “Como é o caso de indivíduos que revelem perfis pautados por baixos níveis de empatia e amabilidade pelo outro ou então traços de neuroticismo elevados (irritabilidade, ansiedade, baixo controlo de impulsos e instabilidade emocional), narcisismo, insegurança e dificuldade ao nível da regulação emocional.”

Habituada a acompanhar casos associados à temática da Psicologia da Justiça, como situações que envolvem conflitos parentais, violência doméstica, maus-tratos infantis, abuso, entre outras, a especialista admite que o ímpeto de vingança é uma “constante” nas consultas que dá. Provavelmente porque os comportamentos desviantes, “pautados pela falta de empatia e autocontrolo, bem como por sentimentos como a raiva, o ódio e a tristeza”, são a base do problema. “Pessoas que tenham sido expostas a situações de maus-tratos, bullying, violência doméstica, sentimentos de rejeição parental e conjugal, entre outras, poderão vivenciar de forma mais intensa este tipo de desejo.” No entanto, ressalva, também se verifica este tipo de desejo em situações do quotidiano expostas em consulta. “Mas mais controlado pelos mecanismos de regulação emocional.”

Olho por olho, dente por dente

De resto, a vingança vai muito além da esfera individual, funcionando até como motor da própria História. Isso mesmo realça Ricardo Raimundo, autor do livro “Grandes vinganças da História de Portugal” [recordamos algumas na caixa ao lado], que nos ajuda a mergulhar no passado da própria vingança. “É algo intrínseco ao ser humano”, reforça o autor. “Desde os tempos mais remotos, ainda muito antes de Cristo, que prevalecia a chamada lei de Talião: olho por olho, dente por dente. Depois, com o aparecimento das religiões monoteístas, há uma tentativa de regressão, a ideia de dar a outra face, do perdão.” Entretanto, surge a figura do Estado, que começa a chamar a si o exercício da Justiça. “Mas essa ligação à vingança acabou por se manter. Tanto que nos EUA, por exemplo, quando alguém é condenado à pena de morte, os familiares das vítimas são convidados a assistir. Pretende-se uma espécie de efeito reparador em relação ao mal que foi feito.”

Jean Martin-Rabot distingue dois conceitos: o de vingança individual, que se concretiza por exemplo “no caso de uma mãe, na Alemanha, que matou o violador e assassino da filha” [e curiosamente foi julgada, mas não condenada, por pressão dos média e do povo], e o de vingança coletiva. O sociólogo dá o exemplo da máfia e dos barões da droga, em que vigora o princípio “mataste um dos meus, tenho que matar um dos teus”. “Verificamos também essa forma de vingança nos grupos de jovens dos bairros periféricos das cidades, nomeadamente quando esses grupos se atacam mutuamente em nome de um ato de vingança. Ou ainda a chamada ‘vingança de sangue’ ou os ‘crimes de honra’, quando a desonra foi introduzida no seio de uma família por um dos seus membros.” Ou, num plano bem mais leve e rotineiro, a própria “vingança dos consumidores”. “O grupo, por meio da pressão social que exerce, leva a formas de ação que os indivíduos executam piamente. É o caso dos consumidores, que manifestam o seu desagrado ou as suas críticas, através das redes sociais.”

O professor de Sociologia da Universidade do Minho salienta, a propósito, os estudos de um colega italiano, Vilfredo Pareto, que entendia a vingança como “um meio de restabelecer o equilíbrio social”. “É também uma forma de afirmar a solidariedade e a fidelidade do indivíduo em relação ao seu grupo social de pertença. A vingança implica um ressentimento causado por algum sentimento de frustração. E não há dúvidas de que o ressentimento, como o mostrou primorosamente Nietzsche, e a vingança que se nutre desse ressentimento, constituam as mais poderosas motivações da ação humana.”

Vinganças famosas na história de Portugal

Teresa de Leão vs D. Afonso Henriques
A prova de que a ideia de vingança é tão antiga como a nossa História. Após ser derrotada pelo próprio filho na Batalha de São Mamede (1128), Teresa de Leão vinga-se, lançando uma espécie de maldição ao próprio filho, D. Afonso Henriques. “Com ferros me bateste, com ferros morrerás.”

Leonor Teles vs Maria Teles de Meneses
Angustiada com a possibilidade de a irmã poder ter um papel mais importante do que ela, Leonor Teles, mulher de D. Fernando, fomentou em João de Portugal, filho do rei Pedro I e marido da irmã, Maria Teles de Meneses, a ideia de que esta o traía. Acometido por tais desconfianças, o infante acabou por matar a própria esposa.

Marquês de Pombal e os Távoras
Outro exemplo marcante é o do Marquês de Pombal, que tendo-se sentido “alvo de chacota de membros da nobreza” durante vários anos, como lembra Ricardo Raimundo, fez de tudo para se vingar quando chegou ao poder, como primeiro-ministro de D. José. O processo dos Távoras, que resultou na execução de vários elementos desta família, é um bom exemplo disso.