Adeus, amizade
Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.
Pazes?, perguntou a advogada do homem, e abanou a cabeça:
– É muito difícil estar a fazer de conta que nada aconteceu…
Não há hipótese de acordo, acrescentou. No banco dos réus, estava Carla, uma mulher de vestido curto às bolinhas brancas e um casaquinho vermelho, assemelhava-se um pouco a Minnie, a namorada do Rato Mickey. A arguida disse à juíza que não queria falar, para já. Mandaram entrar João, o queixoso, alto, barrigudo, pisando o chão em passos moles. Mostrou-se, no entanto, concentrado como o jogador de xadrez numa final, antecipando na cabeça o movimento das peças. Disse ser empresário.
– Continua a ser amigo da senhora?
– Não. Estamos de relações cortadas.
– E quando é que terminou a vossa amizade?
– Não sei quando. Sei que foi terminando.
“A certa altura da minha vida”, começou João, “passei um momento difícil a nível de saúde. Tive uma intervenção oncológica. Os negócios sofreram bastante. Passei dificuldades. Em comentário com a Carla, ela dispôs-se a ajudar. Eu aceitei, consenti, e, não querendo que ficasse só na palavra – eram 41 mil euros – escrevi que estava disposto a pagar taxa de juro líquida de 2%. A disposição foi minha, ela não exigiu. Não havia prazo. Mas fiz uma confissão de dívida. Quanto mais depressa pagasse, melhor. Ela mostrou-se bastante disponível: ‘Não stresses’”.
– Esse montante está liquidado?, perguntou a procuradora.
– Com todos os juros, desde Março de 2021.
Cerca de dois mil euros de juros, no final, e o total do dinheiro emprestado restituído e anotado em folhinhas Excel, parcela a parcela. Então, o que correu tão mal?
– A certa altura, começou a dizer que estava a ficar impaciente, continuou João.
Pela descrição que fez, não só impaciente mas violenta. Sendo professora, Carla ameaçou ir falar com os filhos de João à escola, para dizer que o pai lhe devia dinheiro, e foi mesmo à empresa dele armar um escândalo, ameaçando levar as plantas, deitando prendas de Natal ao chão, e foi falar com a mãe dele, chamando-lhe “aldrabão”, e fez um perfil falso no Facebook, chamando-lhe publicamente “caloteiro”. Mandou-lhe mensagem na noite de Natal, às 23 horas, dizendo esperar que ele tivesse “uma noite horrível”. Um homem telefonou a dizer que era namorado dela e que o partia todo. João foi falar com Carla.
– Mas tu achas que te quero prejudicar? Eu sou tua amiga.
– Mas não é isso que tens feito, disse João. Eu quero pagar-te o mais depressa possível, só não pago porque não posso. Eu estou à espera que um cliente me pague 20 mil euros e dou-te imediatamente dez!
Carla queria dez mil imediatos para a entrada de uma casa. E ele, mal recebeu, deu-lhos. Isto durou de 2017 a 2021. Mensagem SMS lida no tribunal: “És mesmo um bandalho. Eu dou cabo da minha vida, mas também dou cabo de ti”. Carla sabia do problema oncológico, do tumor no intestino. De repente, noites sem dormir por causa dela. Conversa com o médico: “Se não quer voltar a ter uma recidiva, mude de vida para uma forma mais calma. No seu intestino, vejo o seu divórcio, a morte do seu pai, está lá tudo”.
E agora o preço desta amizade nova (conheceram-se numa viagem de João aos Açores, com amigos comuns). A advogada de Carla abriu, por assim dizer, a cortina das outras expectativas: João escreveu a Carla explicando, com uma frase que começava “mas eu alguma vez…?”, que só aceitava o empréstimo se a relação deles fosse apenas amizade, pois “não comprava nenhuma relação”.
– Sim, disse-lhe que, se havia alguma intenção para além da amizade, esse empréstimo estava fora de parte, confirmou João no tribunal.
Endireitou-se, curvou-se de novo, mansamente:
– Sempre tive com ela uma relação que considero de amizade, e até hoje eu agradeço a sua ajuda!
Não stresses, dissera Carla, mas então stressou ela.
Uma vez conversei com um amigo, aliás, foi a repetição da conversa que tivera com outro amigo, anos antes: sei que posso contar contigo e tu sabes que poderás comigo, se algum de nós precisar de dinheiro e o outro puder ajudar. Como amigos, sei que me pagarás quando te for possível. Nem antes, nem depois, quando te for possível. Portanto, nunca te pedirei o dinheiro. E não há juros. Se não, ó pá, que vida seria a nossa?
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)