Abusos sexuais na Igreja. Uma penitência para toda a vida

Queixas multiplicam-se, polémicas avolumam-se, pedidos de desculpa sucedem-se. Como uma fina camada de gelo que começa a quebrar e ameaça desintegrar-se de vez. Depois de arrasar outros países, o flagelo dos abusos na Igreja faz mossa também em Portugal. "É como uma ferida. Enquanto não se abrir e desinfetar tudo, não se pode curar."

É como um pesadelo a assombrá-la em loop. O cheiro, o escuro, as dores, o ar abafado, aquele vocabulário “profundamente porco, abjeto, nojento”, o arfar que ainda hoje lhe revolve as entranhas. Às vezes, demasiadas, jura que nunca chegou a sair daquele confessionário onde deixou para sempre a pureza da meninice. Mesmo que tenha sido há dezenas de anos. “Na verdade, nunca acabou. Na minha cabeça está sempre a acontecer. Então nos últimos tempos, com as denúncias, com os relatos, voltou tudo outra vez.” Maria, chamemos-lhe assim, conheceu o padre Fernando tinha uns cinco anos, talvez seis, estava a preparar-se para a primeira comunhão, não se há de esquecer. Nunca se tinha confessado antes, não sabia o que esperar, tardou a ter plena consciência de que algo ali estava profundamente errado. “Na altura em que as coisas aconteceram eu não gostava, chorava, mas não entendia o que se passava. Só mais tarde é que percebi que o padre me fazia mal.”

Ainda hoje tem as cenas daquele filme de terror cravadas na memória como chaga. “Era tudo no escuro do confessionário. Mandava-me entrar para o cubículo onde ele estava, sentava-me à frente dele e com as mãos ia fazendo coisas, a mim e a ele próprio, enquanto fazia perguntas sobre sexo numa linguagem que ainda hoje me dá vómitos.” Durante anos, viveu afundada naquele suplício. “Na minha cabeça havia um grande dilema: ele é padre, como é que me está a fazer mal?”, questionava-se. Levou tempo a perceber que precisava de ajuda. “Eu não sabia que havia outras formas de confessar. As minhas amigas diziam que o padre também as confessava assim. Ninguém me explicou como é que devia ser a confissão e, por falta de conhecimento, eu assumi que a forma como o padre confessava era a forma de confessar. Só anos mais tarde é que percebi que outros padres, em outras paróquias, confessavam de forma diferente.”

E assim o tormento foi-se prolongando no tempo, sob a capa de uma normalidade imaginada que afinal nada tinha de normal. “Eu não gostava das perguntas que ele fazia, da forma como me passava as mãos pelas pernas, como ‘respirava’, da linguagem que usava, mas eu também não percebia tanta coisa da Igreja que achava que tudo aquilo deveria ser normal. Havia muita ignorância.” Fisicamente, nunca foi violento. Mas uma certa forma de violência esteve sempre presente naquele cubículo claustrofóbico e doentio. O contacto físico repugnante, as perguntas sobre posições sexuais, a curiosidade sobre sexo oral e anal, as ameaças que de veladas nada tinham. “Sabes que se um rapaz meter a pilinha na tua pombinha e não me contares vais para o inferno?”, perguntava-lhe o pároco. “E no altar só pregava amor”, realça Maria, ainda incapaz de digerir aquele contrassenso. “Só queria que aquilo acabasse rápido para sair daquele sítio escuro. Percebi que se dissesse sim a todas as perguntas o padre acabava o confesso mais depressa e foi isso que comecei a fazer.” Mas o trauma andou sempre ali enredado, às voltas com a angústia, a revolta, o nojo.

Aos dez anos, mais coisa menos coisa, a mãe, apercebendo-se de que algo não estava bem, questionou-a. Maria contou tudo. “Ela chorou muito e disse que nunca mais ia acontecer. E nunca mais aconteceu.” Mas o pesadelo estava ainda longe de acabar. Por volta dos 13 anos, deixou de dormir e de comer, começou a ter más notas, só chorava. Por indicação do médico de família, começou a ser acompanhada por um psiquiatra. “Quase todas nós, do grupo de raparigas que vivemos o mesmo, passámos por consultórios de psiquiatras e, mais tarde, de psicólogos. Foi outro calvário: antidepressivos, calmantes e afins.” Maria não cala a indignação que há muito traz amarfanhada. “Agora criticam-se os bispos, e muito bem, por não terem agido perante as denúncias de abusos, mas os psiquiatras e os médicos que sabiam o que aconteceu também não deviam ter feito alguma coisa? Sim, há o sigilo profissional, mas nós éramos adolescentes, jovens, alguém tinha obrigação de nos ajudar e não de nos encharcar de comprimidos.”

Pior foi o ceticismo com que se depararam na própria hierarquia da Igreja. “Não acreditaram em mim. Nem nos meus pais. Quando foram falar com o bispo [entretanto falecido], ele disse que eram coisas da minha cabeça, que as crianças inventavam muito.” E assim teve de viver com mais aquela mágoa. Até que em 2019, depois de ler uma entrevista do padre Hans Zollner [pároco e psicólogo alemão que é um dos maiores especialistas em proteção e prevenção do abuso sexual], tudo se tornou assustadoramente claro. “Percebi finalmente o que se tinha passado comigo.” E então pediu para ser recebida pela Comissão de Proteção de Menores da Arquidiocese de Braga. “Fui bem recebida, mas na prática o padre continuou na paróquia até ao fim do confinamento. Agora está afastado. Tem mais de 90 anos.” Maria não se livrou das perguntas incómodas, da sensação de incredulidade, da uma certa suspeição. “Ao longo do processo de denúncia, ouvi coisas como: ‘Tem a certeza que foi esse padre? Ele é tão boa pessoa’. E tive um padre que me disse: ‘Confessei-me tantas vezes a ele e nunca aconteceu nada’.”

Um ceticismo a que acresceu a dificuldade em fazer ver à hierarquia católica os verdadeiros contornos daquilo por que passou. “A maior dificuldade que tive – e conheço outros casos da mesma paróquia que tiveram o mesmo problema – foi convencer pessoas da Igreja de que o que se tinha passado também eram abusos sexuais”, lamenta, antes de deixar um sublinhado que espera não voltar a ver questionado. “O padre nunca teve qualquer tipo de sexo comigo, mas os toques, a linguagem obscena, o arfar, as perguntas sobre sexo oral e anal são violência sexual. São abusos. São crime. E que ninguém tenha qualquer dúvida sobre isto.”

“A Igreja falhou”

O padre que Maria acusa, o homem que espera não ter de encontrar “nunca mais”, é Fernando Sousa e Silva, pároco que chegou à freguesia de Joane (Vila Nova de Famalicão) no início da década de 1960 e só em julho deste ano, seis décadas depois, foi alvo de medidas disciplinares, nomeadamente “a necessidade de se abster de exercer publicamente o seu ministério sacerdotal”. Isso mesmo foi confirmado pela arquidiocese de Braga, em comunicado, publicado na sequência de uma bola de neve de denúncias e testemunhos de alegadas vítimas que têm vindo a ganhar voz. No documento, confirma-se que a Comissão de Proteção de Menores e Adultos Vulneráveis da Arquidiocese de Braga recebeu, entre 2019 e 2021, duas denúncias e detalham-se os passos que têm sido dados desde então. Há ainda um pedido de perdão às vítimas. E um mea culpa. “Reconhecemos que, neste caso, a Igreja falhou no dever de proteger os mais frágeis e vulneráveis.” Confrontado com as acusações, o pároco em causa jurou inocência.

Esta é uma de várias polémicas que têm marcado o dia a dia da Igreja portuguesa nos últimos tempos e que aparentam ter um denominador comum: supostas tentativas de encobrimento, nalguns casos durante décadas. No final de julho, o jornal “Observador” apontou o dedo a D. Manuel Clemente, cardeal-patriarca de Lisboa, por alegadamente ter tido conhecimento de uma denúncia de abusos sexuais de menores relativa a um sacerdote do patriarcado (chegando mesmo a encontrar-se com a vítima) e não ter comunicado o caso às autoridades civis. Segundo a mesma notícia, o episódio, ocorrido nos anos 1990, já havia sido relatado também a D. José Policarpo, anterior patriarca. Numa carta aberta, D. Manuel Clemente defendeu que “este caso e outros do conhecimento público, que foram tratados no passado, não correspondem aos padrões e recomendações” de hoje, vincando que o seu antecessor “acolheu e tratou o caso em questão tendo em conta as recomendações canónicas e civis da época e o diálogo com a família da vítima”. Quanto a si, e ao facto de não ter denunciado o caso às autoridades, garantiu que a preocupação da vítima “era não haver uma repetição do caso, sem desejar de forma expressa a sua divulgação”. Numa audiência com o Papa Francisco, D. Manuel Clemente colocaria mesmo o lugar à disposição.

“Os efeitos já se estão a notar. Pessoas que abandonam a Igreja, por falta de confiança, por se sentirem incomodadas. Penso que nada será como dantes”, garante Maria João Sande Lemos, do Movimento Nós Somos Igreja

Nos últimos dias, a mira virou-se para D. José Ornelas, bispo da diocese de Leiria-Fátima e presidente da Conferência Episcopal Portugal (CEP). O “Público” noticiou que o pároco está a ser investigado pelo Ministério Público por eventual “comparticipação em encobrimento” de casos de abusos sexuais sobre crianças acolhidas num orfanato dirigido por um padre dehoniano numa cidade da província moçambicana da Zambézia. O caso remonta a 2011, quando José Ornelas era o responsável máximo pela Congregação dos Sacerdotes do Sagrado Coração de Jesus, mas a denúncia só chegou à Procuradoria-Geral da República no último mês. Confrontada com a situação, a CEP garantiu que, à data dos alegados factos, o seu presidente “deu indicações” para que as suspeitas fossem investigadas, através de um inquérito interno, não tendo sido encontradas evidências de “possíveis abusos”. O bispo ressalvou, no entanto, que não existe registo do mesmo por se tratar de um inquérito informal. “Posteriormente, quer a Procuradoria-Geral de Moçambique, quer a Procuradoria italiana de Bérgamo, em Itália, onde residia um dos sacerdotes visados [cuja nacionalidade é italiana], investigaram detalhadamente todas as situações e arquivaram essas mesmas investigações, ilibando o missionário dehoniano em questão”, reforça o comunicado. Na sequência deste caso, D. Manuel Linda, bispo do Porto, veio inflamar ainda mais a polémica ao afirmar que o crime de abuso sexual de menores não era um crime público e que, portanto, não havia obrigatoriedade de denúncia. A ideia foi prontamente contestada por penalistas e pelo próprio presidente da CEP, D. José Ornelas.

Na avalanche de notícias relacionadas com o tema dos abusos na Igreja, destaque ainda para o comunicado divulgado recentemente pela Província Portuguesa da Companhia de Jesus, em que se assumia que oito padres jesuítas, entretanto falecidos, terão, “com um grau de probabilidade elevado”, abusado sexualmente de menores, entre as décadas de 1950 e 1990. Ainda segundo a Companhia de Jesus, os casos, que ocorreram maioritariamente em contexto escolar, foram já comunicados à Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais na Igreja Católica, criada em janeiro deste ano. A ideia foi, citando a CEP, “reforçar e alargar o atendimento dos casos [de abusos sexuais] e o respetivo acompanhamento a nível civil e canónico”, bem como “fazer o estudo em ordem ao apuramento histórico desta grave questão”. “Temos muita pena e custa-nos muito tratar estas coisas, como qualquer família que tratasse de um problema destes, mas não temos medo e temos todo o interesse em esclarecer tudo isto”, vincou, na altura, D. José Ornelas.

Efeito dominó

Desde então, e segundo os últimos números disponíveis – uma nova conferência de imprensa está agendada para esta terça-feira, dia 11 -, a comissão liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht já recebeu mais de 400 queixas de abusos sexuais no contexto da Igreja, envolvendo cerca de uma centena de sacerdotes. Destas queixas, pelo menos 17 foram encaminhadas para o Ministério Público. Entre as vítimas, 60% são do sexo masculino, 40% do sexo feminino, com os seminários a representarem uma fatia importante dos casos. “Sendo estruturas fechadas, facilitavam quase uma transmissão transgeracional da situação de abuso”, confirmou Strecht. A ideia é elaborar, até ao final do ano, um relatório que se espera seja uma espécie de raio-X da realidade dos abusos sexuais no contexto da Igreja Católica portuguesa ao longo das últimas décadas.

Enquanto esse tempo não chega, as ondas de choque provocadas pela criação da comissão já se fazem sentir, com o número de relatos e notícias relacionadas com o tema a sucederem-se a um ritmo nunca antes visto. “Claramente estes movimentos vão potenciar a desocultação de mais acontecimentos deste género”, reconhece Carla Ferreira, gestora técnica da rede CARE (equipa especializada que intervém na violência sexual contra crianças e jovens), da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV). “Já vimos este fenómeno noutros casos. Quando se abrem canais de comunicação, vamos ter mais relatos. Possivelmente continuam a não a ser sequer a ponta do icebergue, mas vão seguramente conhecer-se outras situações.” Como uma fina camada de gelo que se vai quebrando lentamente. “Há uma tendência para revelações e descobertas sucessivas”, reforça, assumindo que este crescendo já se nota no número de queixas (relacionadas com abusos no contexto da Igreja) que têm chegado à APAV nos últimos tempos. “Mesmo que não sejam ainda números substanciais no total de denúncias de abusos”, ressalva.

Sendo certo que o tema não nasceu em Portugal com a criação da comissão independente. Já há quase 30 anos, em 1993, o padre brasileiro Frederico Cunha foi acusado de ter matado, em maio de 1992, o jovem Luís Miguel, de 15 anos, de quem teria abusado sexualmente. Frederico, padre no Funchal, tornou-se então o primeiro padre católico a ser julgado e condenado em Portugal. Mas a pena, de 13 anos de prisão, nunca foi cumprida na totalidade: em 1998, aproveitando uma saída precária, fugiu para Madrid e daí apanhou um avião para o Brasil. Depois disso, foi preciso esperar até 2012 para ver um padre ficar preso por abusos sexuais de menores. Luís Miguel Mendes, à época vice-reitor do seminário do Fundão, foi levado pela PJ depois de alunos internos da instituição terem denunciado os abusos. O pároco acabaria condenado a uma pena de prisão de dez anos, que ainda hoje cumpre, com sentença confirmada por dois tribunais superiores, incluindo o Supremo Tribunal de Justiça, em 2017.

Gil Carvalho, então diretor da unidade da PJ da Guarda e responsável pela ordem de detenção do pároco, não esconde que, na altura, a investigação teve de se desenvencilhar de certos “anticorpos” que foram surgindo pelo caminho. “Tornou-se óbvio que havia, por parte da hierarquia da Igreja, uma tentativa de ocultar a situação. Se bem me lembro na altura, o bispo até já tinha marcado uma reunião com os pais dos ofendidos e dizia que tudo ia ser tratado ‘em família’.” À resistência da Igreja, juntava-se, muitas vezes, a descrença da própria sociedade. “Lembro-me de um dos rapazes dar uma entrevista ao JN em que dizia que quando ia à GNR fazer queixa ainda se riam dele. E isto acontece muito: as vítimas tentam fazer queixa, ninguém liga e deixam de acreditar.”

Desde então, os casos de padres portugueses a braços com a Justiça contam-se pelos dedos. Aliás, em 2019, a CEP fazia saber que, desde 2001, os tribunais eclesiásticos só tinham analisado cerca de uma dezena de casos e que, em mais de metade, a investigação tinha parado “por falta de fundamentos”. A Igreja reafirmava, no entanto, o empenho numa política de “tolerância zero”. Enquanto isso, no estrangeiro, a cortina ia caindo, deixando vislumbrar um fenómeno de dimensões gigantescas em vários países. Se já na década de 1980, as revelações de abusos de crianças num orfanato em Newfoundland, no Canadá, provocaram um escândalo à escala mundial, um trabalho do jornal “Boston Globe” em 2001 havia de projetar definitivamente o assunto. Conduzida pela famosa equipa “Spotlight”, a investigação, que até um Pulitzer mereceu, revelou que a hierarquia católica havia encoberto, só na cidade de Boston, os crimes sexuais cometidos por cerca de 90 padres. Estava aberta a porta para uma sucessão de revelações escabrosas por todo o Mundo: Alemanha, França, Polónia, Áustria, Bélgica, Irlanda, Países Baixos, México, Chile, Austrália e EUA são exemplos de países sacudidos por um terramoto que foi forçando a Igreja a tomar medidas.

Uma das mais relevantes tomadas de posição ocorreu em dezembro de 2019, quando o Papa Francisco pôs fim ao segredo pontifício para denúncias de abusos sexuais, determinando que os processos canónicos conservados nos arquivos das dioceses e da Santa Sé relativos a abusos sexuais cometidos por membros do Clero fossem facultados às autoridades civis. Já em fevereiro desse ano, o Papa tinha chamado a Roma os responsáveis pelas conferências episcopais de todo o Mundo para um encontro, sem precedentes, que visou discutir e encontrar soluções para o “11 de setembro da Igreja Católica”, como já foi apelidado o flagelo do abuso de menores no contexto religioso. Três meses mais tarde, em maio, anunciou legislação mais rigorosa, impondo a obrigatoriedade de os sacerdotes e religiosos denunciarem suspeitas de abusos na Igreja, assim como qualquer encobrimento por parte da hierarquia.

David contra Golias

Ângelo Fernandes, fundador da Quebrar o Silêncio, a primeira associação portuguesa de apoio especializado para homens sobreviventes de violência sexual, lembra que os episódios que envolvem elementos ligados à Igreja se podem tornar ainda mais traumáticos pelos sentimentos díspares que despertam nas vítimas. “Estamos a falar de pessoas que ditam valores morais e que deveriam ser bússolas nesse sentido, o que pode gerar uma enorme ambiguidade nas vítimas. Há uma particular complexidade que se pode tornar um obstáculo à recuperação. Lembro-me de um caso em que o padre abusador depois pedia aos meninos que rezassem com ele para pedir perdão pelos abusos, numa clara manipulação do seu papel e do seu estatuto.” Uma ambiguidade que se exponencia quando há uma responsabilização das vítimas. “Num outro caso, o padre dizia que o menino é que era especial, que tinha características que fazia com que ele pecasse, que o seduzia, que era uma tentação. Faz-se crer que o problema é da vítima, há uma transferência da culpa. E estes homens crescem a pensar que são culpados pelo que lhes aconteceu.”

Carla Ferreira, da APAV, chama a atenção para uma outra nuance comum no contexto que envolve estas vítimas. “Há, regra geral, uma grande dificuldade relacionada com a desocultação das situações, uma dinâmica do segredo exacerbada face ao receio de enfrentar a instituição, numa perspetiva do eu contra o eles, de uma batalha de David contra Golias. A que acresce o facto de os agressores serem muitas vezes pessoas conhecidas e respeitadas dentro da comunidade, o que faz com que as próprias vítimas temam pela credibilidade das denúncias.”

O resultado é, quase sempre, um emaranhado de traumas que não esmorecem com o tempo e que, muitas vezes, até se vão avolumando. “Muitas destas vítimas sofrem de stress pós-traumático, que afeta diferentes dimensões da sua vida. Na questão da confiança, numa hipervigilância nas relações de proximidade e referência, na ideia de que qualquer pessoa pode ser um abusador”, enumera Ângelo Fernandes. E depois há o resto: os flashbacks, as memórias indesejadas, os pesadelos, a baixa autoestima. O fundador da “Quebrar o Silêncio” deixa, no entanto, um alerta. “Há um grande mito que é a ideia de que o trauma fica para a vida. Não é verdade. É possível ultrapassar estas situações.”

E como fica a relação dos crentes com a Igreja, no meio desta espiral de revelações e denúncias? Fernando Calado Rodrigues, pároco na diocese de Bragança-Miranda, reconhece que a hierarquia da Igreja Católica portuguesa terá errado numa primeira fase, por ter apresentado uma certa resistência ao escrutínio do fenómeno e por ter “acreditado que aqui seria diferente”, mas olha para tudo o que tem acontecido nos últimos tempos como algo “importantíssimo”. “É como uma ferida. Enquanto não se abrir e se desinfetar tudo, não se pode curar.” E elogia a postura adotada pelos membros da hierarquia eclesiástica nos dois casos mais recentes. “Em relação a D. José Ornelas, penso que o procedimento foi correto, que fez o que tinha que fazer, comunicando o caso na devida altura a quem tinha que comunicar. Na reação ao caso de Joane, parece-me relevante que o bispo tenha suspendido o padre em causa ainda antes desta polémica. E gostei sobretudo do tom dos comunicados, dirigido às vítimas, pedindo-lhes perdão, dando-lhes a oportunidade de falar. Acho isso tudo importantíssimo.”

“Estamos a falar de pessoas que ditam valores morais e que deveriam ser bússolas nesse sentido, o que pode gerar uma enorme ambiguidade nas vítimas”, reconhece Ângelo Fernandes, fundador da associação Quebrar o Silêncio

Também Maria João Sande Lemos, do núcleo coordenador do movimento Nós Somos Igreja, entende que, finalmente, “as conferências episcopais estão a tomar as decisões certas”. “Estamos a falar de algo absolutamente horrível, não há como minimizar isto. Durante muito tempo, ia-se ocultando, ia-se disfarçando, não se ouviam as pessoas, cá como no resto do Mundo. Mas finalmente a hierarquia católica percebeu que não podia continuar a adiar este assunto.” Reconhece, ainda assim, que “se demorou muito e que há de ser difícil que as pessoas voltem a ter a mesma confiança que tinham antes”. “É verdade que a Igreja resiste há 2000 anos, mas não há como negar que este é um acontecimento muitíssimo grave. E os efeitos já se estão a notar. Pessoas que abandonam a Igreja, por falta de confiança, por se sentirem incomodadas. Penso que nada será como dantes. E que a hierarquia tem, de uma vez por todas, de deixar de ser impenetrável.”

Maria, que ainda carrega com ela o cheiro, o escuro, as dores, o ar abafado daquele confessionário dos horrores, continua a sentir-se “profundamente católica” (“racionalmente católica”, acrescenta), mas não nega que, nos últimos tempos, a fé que a move “tem sido abalada”. E ainda assim reza, cada vez mais. Para que Deus não a deixe perder de vez a fé. “Os padres abusadores não representam a Igreja. São o joio no meio do trigo. É preciso denunciar, mexer no passado e no presente e denunciar. Acredito que os abusos ainda acontecem e não podemos permitir.”

Acusações visam Nobel da Paz

Também a nível internacional a polémica à volta dos abusos sexuais na Igreja continua a adensar-se, com o rol de alegados agressores a engrossar a cada dia. Recentemente, as suspeitas chegaram a Ximenes Belo, ex-administrador apostólico de Díli (capital de Timor-Leste) e prémio Nobel da Paz em 1996. O véu foi levantado pelo jornal holandês “De Groene Amsterdammer”, que publicou testemunhos de alegadas vítimas de abusos, quando eram menores, bem como de duas dezenas de pessoas que terão tido conhecimento do caso, incluindo “individualidades, membros do Governo, políticos, funcionários de organizações da sociedade civil e elementos da Igreja”. Os abusos terão ocorrido entre as décadas de 1980 e 1990, em Timor-Leste. O “Observador” adiantaria, entretanto, que as suspeitas eram também do conhecimento da Igreja portuguesa pelo menos desde 2010. O próprio Vaticano anunciou ter imposto sanções disciplinares a D. Ximenes Belo nos últimos dois anos (incluindo limites aos movimentos do bispo e ao exercício do seu ministério), após alegações relativas ao comportamento do Nobel da Paz. Após a revelação do “De Groene Amsterdammer”, Ximenes Belo abandonou a residência dos Salesianos em Lisboa, onde residia, encontrando-se incontactável e em paradeiro incerto.