Abril vive neles

Flores dos Santos Leite chegou a andar de burro para acudir aos doentes mais aflitos, num tempo em que os cuidados de saúde eram escassos e a miséria exponencial. Maria Elisa Marques, professora a vida inteira, teve de pedir a Salazar para casar. Não esquece os livros “horríveis” que tentava contornar. Maria do Céu Ferreira sentiu na pele o peso do desemprego e da desproteção social. Acabou salva pela Revolução. Maria Isoleta Costa abraçou a via da magistratura no início da década de 1980. Tivesse nascido uns anos antes e isso não lhe teria sido permitido. Sandra Benfica foi “filha ilegítima”. Só porque o pai não estava casado com a mãe. São rostos que contam uma história maior, de mudanças sociais profundas. Histórias de Abril, para não esquecer nunca.

Flores dos Santos Leite tem 95 anos, não tarda está nos 96, o cabelo branquinho, branquinho não o deixa mentir, mas é só isso, a memória segue intacta, ele continua a ser um prodigioso contador de histórias, indiferente ao pó que a idade semeia. Formou-se em Medicina lá no ano de 1950, já o Estado Novo estava quase a atingir a maioridade, e começou logo a trabalhar na Misericórdia de São João da Madeira (o hospital surge mais tarde, já em 1966, e só em 1975 é transferido para a alçada do Estado), passava lá as manhãs, à tarde dava consultas a título particular, e sempre que era preciso ia ver doentes a casa, de dia, de noite, em plena madrugada, mais perto, mais longe, chegou a ir até Gaia, volta e meia tinha de se aventurar serra dentro, por vezes o carro nem sequer lá chegava. “Aqui perto de São João da Madeira havia umas zonas mais acidentadas, não dava para atravessar o rio, deixava o carro, atravessava a ponte e do outro lado estava alguém à minha espera com um burro.” E então seguiam viagem, quantas vezes por caminhos de cabras, quantas vezes com quedas pelo meio – “então no inverno nem lhe digo” -, o medo de ser assaltado ali a pairar, lembra-se de um colega que chegou a ser, ele por sorte não, a dada altura o cunhado começou a acompanhá-lo e até pistola levava.

“A medicina que se fazia nessa altura era a medicina do João Semana [personagem de um bondoso médico rural eternizada no romance “As pupilas do senhor reitor”, de Júlio Dinis], íamos a todo o lado, fazíamos tudo, éramos pau para toda a colher.” Os problemas respiratórios eram os mais frequentes (sobretudo as pneumonias), os digestivos também, as cólicas renais, as apendicites – ainda que nestes casos os doentes tivessem mesmo de ser transportados para o hospital. “Mas havia ‘operaçõezitas’ que nós fazíamos em casa, tirar um quisto da cabeça, por exemplo, levávamos anestesia e fazíamos.” Quem diz tirar quistos diz tratar dores de dentes. Ou até fazer partos. Prescrever contracetivos orais é que nem pensar. Pelo menos, assim rezava a teoria. A prática era outra história. “Poder não se podia, mas muitos faziam-no na sombra. Quantas vezes havia médicos chamados à pedra por causa disso. Eu próprio cheguei a passar [contracetivos], apesar de vir de uma família altamente religiosa, em que eram todos contra isso. Mas havia famílias tão pobres que, coitadinhas, não podiam mesmo ter mais filhos. Era uma questão social e de humanidade.”

Nalguns casos, sobretudo ali para as zonas mais serranas e periféricas, a pobreza era profunda, extrema, aviltante. Vivia-se paredes-meias com os animais, os humanos em cima, os bichos em baixo, a fonte de aquecimento possível quando outras faltavam, as condições básicas de higiene que tantas vezes ficavam ali perdidas entre uma coisa e outra. “Uma vez apareceu-nos lá no hospital um doente que dormia no meio de sacos de batatas e estava cheio de bichos, tinha uma camada de lixo tão grande sobre a pele que não conseguimos tirar com o sabão.” E depois era a miséria que lhe ia entrando pelos dias dentro. “Lembro-me de ir ver uma surda-muda a uma casa de madeira em que a porta não existia e o vento enfiava-se ali dentro por aquelas tábuas todas.” Ele nem foi capaz de cobrar os 50 escudos da consulta. “Às vezes, quando via que os doentes não tinham posses, até ia eu à farmácia buscar os medicamentos e levava-os.”

O relato longínquo de Flores dos Santos Leite serve de retrato social do tempo em que o Estado Novo era a lei, em que Portugal e os portugueses viviam amordaçados pela censura, pela PIDE, por condições de vida degradantes que afetavam uma parte significativa da população. Os números que relevam dos Censos elaborados em 1970 ajudam a ilustrar isso mesmo: só 47% das habitações tinham água canalizada, só 60% tinham esgoto, apenas um terço possuía duche. Mais de metade da população (52,3%) trabalhava nos setores primário e secundário, uma boa parte na agricultura, reféns do clima e dos caprichos das colheitas, sem um apoio que lhes valesse em caso de apuros, a pobreza a grassar, nos meios rurais ainda mais. Manuel Carlos Silva, sociólogo e professor catedrático aposentado da Universidade do Minho, não tem dúvidas. “Apesar de ainda hoje haver 20% de pobres, antes do 25 de Abril a pobreza era mais generalizada.” Até porque a ideia de proteção social tutelada pelo Estado era ainda uma utopia. “Os mais pobres estavam totalmente dependentes de assistência eclesiástica ou outra, caridade e esmolas dos patronos e ‘beneméritos’, havendo situações de desproteção total, miséria e fome.”

Uma conjuntura que impactava diretamente na longevidade. Em 1950, a esperança média de vida à nascença era de 58 anos, em 1970 ainda se ficava pelos 67 anos (em 2019 foi de 81 anos). Tanto mais quanto a oferta de serviços de saúde era parca e deficitária e a universalidade uma miragem. Jorge Alves, historiador e professor jubilado da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, chama a atenção para isso mesmo. “Os hospitais do Estado eram em número escasso e só nas principais cidades, predominavam os hospitais das misericórdias e uma espécie de mini sistemas de saúde assentes nas caixas de previdência de cada setor.” Não espanta, por isso, que, em 1970, houvesse apenas um médico por cada mil habitantes (hoje a média está nos 5,4), que se tenham realizado quase 110 mil partos em casa (em 2020 foram cerca de mil), que morressem 55,5 crianças com menos de um ano por cada mil nascimentos (hoje apenas três).

O paradigma alterar-se-ia de forma significativa na sequência do 25 de Abril, com o ano de 1978 a revelar-se particularmente marcante. “Entre 1975 e 1976, muitas misericórdias são intervencionadas e passam para o Estado, assistindo-se à dinamização da rede hospitalar. E na fase do PREC [Processo Revolucionário em Curso, que culminou no 25 de Novembro de 1975] as consultas nos hospitais começam a ser gratuitas. Depois, em 1978, dá-se sequência à implementação do Serviço Nacional de Saúde (SNS), previsto na Constituição de 1976.” E o caminho vai-se fazendo. “As coisas foram mudando com o tempo, não foi bruscamente. Até porque não havia economia para isso”, recorda Flores dos Santos Leite, que leva já mais de sete décadas ligado à medicina. “O SNS regulamentou e nivelou a assistência médica, deu-lhe uma certa disciplina, tornou-a mais acessível e favoreceu as especialidades, porque antigamente eram poucos os especialistas. Mesmo a Pediatria era feita por médicos de Medicina Interna. As condições melhoraram, mas não se resolveu tudo.” O sociólogo Manuel Carlos Silva aponta no mesmo sentido, lembrando que, ainda que noutra escala, a questão da falta de profissionais se continua a colocar nos dias de hoje e que “os serviços de saúde estão concentrados em grandes e médias cidades, sendo menos presentes e eficientes no interior”.

Pedir a Salazar para casar

Também o ensino e a Educação em Portugal viviam mergulhados numa teia castradora e deficitária, particularmente até aos anos 1960. Com uma boa parte da população afundada na pobreza, como já aqui se disse, a escola estava longe de ser uma prioridade – com muita frequência, as dificuldades económicas impunham que as crianças largassem a escola para ir trabalhar e ajudar a família. Só a partir de 1964 começam a ser aplicadas reformas para aumentar a literacia, contemplando medidas como a passagem da escolaridade obrigatória dos quatro para os seis anos. Ainda assim, a taxa de analfabetismo registada no início da década de 1970 (cerca de 25% da população, um valor idêntico ao registado em Itália nos anos de 1920) é a prova de que o desprezo a que a educação esteve sujeita durante décadas deixou marcas que tardaram a esbater-se.

Maria Elisa Marques, 77 anos, natural de Braga, conheceu os meandros desta realidade. A “professora Elisa”, como lhe chamaram a vida toda, formou-se na escola do Magistério Primário de Braga, logo aos 18 anos começou a trabalhar, no concelho de Amares. “E tive o meu primeiro problema logo nessa escola, porque a lei fascista obrigava-nos a residir na freguesia em que trabalhávamos. Então, tive de pedir ao regedor da freguesia que me passasse uma declaração a atestar que não havia na freguesia uma casa compatível. Só assim pude continuar na minha casa.” Depois, quando anos mais tarde quis juntar os trapinhos, outro empecilho. “Para casar, tive de pedir licença ao Salazar. E tive de provar que o meu marido ganhava mais do que eu. Nós até costumávamos brincar com o assunto e dizíamos: ‘Ele [Salazar] sabe que paga tão mal que quem nos vai salvar é o marido’.”

Maria Elisa Marques, professora a vida inteira, começou a exercer ainda na década de 1960. Não esquece os livros “horríveis” e uma ideologia que se pretendia inculcar à força
(Foto: Gonçalo Delgado/Global Imagens)

Isso não foi o pior. O pior eram aquelas duas fotografias ditatorialmente cravadas na parede. “A mim, que sempre fui uma mulher de esquerda, que cheguei a ter a minha família perseguida pela PIDE, arrepiava-me ter de ver todos os dias na parede o Salazar e o Thomaz [Américo Thomaz, então presidente da República].” E depois era o resto. Os meninos que iam para a escola mal vestidos, mal comidos, muitos deles descalços, com frio, “alunos inteligentíssimos que por causa do dinheiro tinham de deixar de estudar”. A matéria que era “horrível, horrível”, o livro que era obrigatório e em que se pretendia inculcar à força a ideologia fascista e nacionalista, o Hino Nacional, o hino da Mocidade Portuguesa, a apologia constante de Salazar e dos seus princípios. “Muitas vezes, dei a volta ao texto. Escolhia os textos, passava partes à frente, dava a volta aos assuntos e ensinava à minha maneira, dentro dos meus princípios”, orgulha-se Elisa. Nas salas, o crucifixo não podia faltar. “Estive até numa escola onde havia um altar no fundo da sala”, rebobina.

E jamais pode esquecer aquele dia 25 de abril, corria o ano de 1974, ela estava a dar aulas numa escola de São Vicente de Areias (Barcelos) quando chega uma colega mais velha, esbaforida, a anunciar que ia o “fim do Mundo” em Lisboa. “Deve ser uma guerra. Ai que medo”, dizia. Afinal não. Era o golpe de Estado a acontecer, a ditadura a estilhaçar-se para dar lugar à democracia. “A minha mãe ligou lá para o café da terra a dizer para me ir embora, que tinha havido uma revolução e o Marcello [Marcello Caetano, que por essa altura já havia rendido Salazar na presidência do Conselho] ia cair. E lá fui eu para Braga festejar, foi uma alegria.” No dia seguinte, quando voltou à escola, foi logo tirar as fotografias da parede da sala de aula. E explicar aos catraios o que estava a acontecer. “Era uma aldeia pobre, que vivia do barro, da argila, e era importante que os meninos levassem para casa notícias do que estava a acontecer.”

A data haveria de ser o arranque simbólico de “uma escola mais aberta e inclusiva, com turmas mistas e mais pequenas, com mais material didático nas salas e onde era muito mais agradável trabalhar”. A este propósito, o historiador Jorge Alves elenca outras mudanças significativas. “Desde logo, a revisão dos programas, que deixaram a ter a apologia do Estado Novo. Deixou de haver um livro obrigatório e houve uma renovação pedagógica. Depois, a multiplicação da oferta dos cursos do Ciclo Preparatório e do Ensino Secundário, que até aí só existiam em certas localidades, a todo o país. Na fase Caetanista, já tinha havido uma multiplicação da rede de ensino, mas só ao nível do Ciclo Preparatório. Daí em diante, as pessoas tinham de deslocar, gerando-se um efeito seletivo, uma espécie de pirâmide em que muitos iam ficando para trás. Depois do 25 de Abril isso mudou.” Por consequência, generalizou-se também o acesso ao Ensino Superior. Basta ver que de 1970 até hoje o número de inscritos passou de 46 mil para perto de 412 mil, quase dez vezes mais. Manuel Carlos Silva aponta ainda outros aspetos relevantes: o alargamento da rede pública pré-escolar, durante décadas inexistente, a diminuição do abandono escolar de crianças entre os dez e os 15 anos e a progressiva feminização na conclusão de cursos superiores.

As mudanças sociais profundas ocorridas na sequência do 25 de Abril fizeram sentir-se também de forma marcante na esfera laboral e da proteção social. Até então, não havia uma organização sindical livre, os trabalhadores eram particularmente precários e mal pagos, não existia salário mínimo nem subsídio de desemprego (o primeiro seria instituído em maio de 1974, o segundo – ou uma versão experimental do mesmo – em março de 1975, ainda durante o 1.º Governo Provisório), muito menos um direito comum à Segurança Social como hoje a conhecemos – esse só seria estabelecido no artigo 63.º da Constituição da República Portuguesa de 1976. “Antes, o que havia era um conjunto de microssistemas de previdência, que eram caixas para onde contribuíam obrigatoriamente patrões e trabalhadores”, explica Jorge Alves. “Havia os sistemas mais organizados, que incluíam apoio às consultas médicas, por exemplo, e outros mais incipientes, sobretudo os mais pobres. E também havia setores que não tinham nada. Como por exemplo a agricultura. Note-se que estes sistemas eram auto-organizados, o Estado não subsidiava nada.”

Maria do Céu Ferreira, 76 anos, natural de Gouveia, distrito da Guarda, sentiu na pele este desamparo, nalguns casos total. Passou-se assim com o pai dela, filho da roda, tecelão desde sempre. “O meu pai foi trabalhar aos sete anos, mas, ainda quando eu andava na escola, a fábrica em que ele estava faliu e passou muitos anos sem trabalhar. Não sei ao certo, mas diria que pelo menos uns 15 anos. O que lhe valeu foi o salário da minha mãe e o facto de ter montado um tear de madeira em casa, que lhe permitiu começar a vender mantas de trapos para as pessoas da aldeia.” Maria do Céu garante que não chegou a passar fome, mas também não havia mimos, quanto muito um chá e um bolo quando alguém fazia anos. E lembra-se que numa ocasião a mãe andava aflita porque não sabia como pagar a renda.

Maria do Céu Ferreira experienciou a sensação da desproteção social em duplicado: primeiro com o pai, que esteve uns 15 anos desempregado; depois, ela própria – mas acabou salva pelo 25 de Abril
(Foto: Miguel Pereira da Silva/Global Imagens)

Anos mais tarde, também ela conheceria o sabor do desemprego. E do desamparo que sente quem não tem um sistema de proteção social a servir de retaguarda. Só que a ela valeu-lhe o 25 de Abril. Maria do Céu lembra-se como se fosse hoje. Era o mês de março de 1974, os patrões anunciaram um aumento para todos os quadros intermédios, ela foi a única a ficar de fora. Na altura, já dirigente sindical, não se ficou. Aliás, não se tinha ficado nunca. Na primeira vez que interveio numa reunião do Sindicato dos Trabalhadores dos Lanifícios dos distritos da Guarda e Viseu, onde quase só havia homens, fez questão de lembrar que também as mulheres tinham o direito de tomar decisões. Mais tarde, quando lhe deram um aumento de 18 escudos e lhe pediram que assinasse um aumento de 21, recusou-se. “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, respondeu ao chefe. E até à festa de Natal promovida pelos patrões se recusou a ir. Naquele dia não foi diferente. “Imediatamente subi a escadinha para falar com o senhor engenheiro, que me disse que eu era uma excelente trabalhadora, mas que ia haver uma remodelação e me iam mandar embora.” O interlocutor nunca o admitiu, mas Maria do Céu até hoje não tem dúvidas de que o despedimento se deveu ao facto de ser dirigente sindical. Chegou até a receber uma contrafé para se apresentar no Governo Civil da Guarda, a… 25 de abril. Já não se apresentou, pois. E não tardou a ser reintegrada na empresa. Ou como a Revolução dos Cravos a salvou do desemprego e do desamparo.

Violência banalizada e profissões proibidas

Quando soube do golpe de Estado, Maria do Céu não conteve a alegria. “O teu filho já não vai à guerra”, recorda-se de dizer à mãe. Logo ela que já se batia pelos direitos dos trabalhadores, e das mulheres em particular, num tempo em que o sexo feminino estava votado a uma subalternização gritante. Senão vejamos: a mulher estava obrigada a ter autorização do marido para poder sair do país; a administração dos bens do casal pertencia ao marido, o “chefe da família”, enquanto à mulher competia o “governo doméstico”; o marido podia abrir a correspondência da esposa e impedi-la de trabalhar; o homem que matasse a mulher, em situação de adultério, estava apenas sujeito a desterro para fora da comarca por seis meses; nalgumas profissões, como a de telefonista ou enfermeira hospitalar, as mulheres estavam impedidas de casar [ainda que esta restrição não tenha vigorado até ao fim do Estado Novo]; estavam ainda proibidas de se candidatar à carreira diplomática, à magistratura e a cargos de topo na máquina do Estado e das Forças Armadas.

Por esta altura, Maria Isoleta Costa, hoje com 63 anos, juíza desembargadora do Tribunal da Relação do Porto, era pouco mais do que uma miúda, sem grande consciência dos caminhos que o regime lhe podia travar. Durante muito tempo, soube apenas que queria seguir Direito. Muito por culpa da avó, que vivia afogada em dificuldades financeiras e tardava em livrar-se de um processo judicial pendente para receber uma herança. “Aquilo não andava e eu fiquei muito sensibilizada com a situação, lembro-me de querer ser advogada por causa disso.” Foi já no tempo da faculdade – entrou na Universidade de Lisboa, em Direito, em 1977 -, quando privou com colegas mais velhas que se tinham candidatado ao recém-criado Centro de Estudos Judiciários (CEJ) para seguir a via da magistratura, que a ideia começou a ganhar forma. Acabaria por lhes seguir os passos. Entrou no CEJ em 1983, num tempo em que as mulheres ainda eram novatas nos corredores da magistratura. Ainda assim, garante nunca ter sentido no curso qualquer desdém, talvez por se tratar de uma “instituição com algum pensamento renovador em relação ao sistema”.

Maria Isoleta Costa, juíza desembargadora do Tribunal da Relação do Porto, seguiu a via da magistratura no início da década de 1980, num tempo em que as mulheres ainda eram novatas nesta área
(Foto: Artur Machado/Global Imagens)

Mesmo quando começou a trabalhar, no Porto, diz nunca ter notado um tratamento “diverso”, talvez um certo olhar mais expectante, por se tratar de uma nova geração de juízes, a que acrescia o facto de ser mulher. “Durante muito tempo, as mulheres foram essencialmente donas de casa, professoras primárias, exerciam profissões mais ‘femininas’ associadas à formação de crianças. A magistratura era uma área essencialmente masculina e notou-se, a princípio, alguma dificuldade em assimilar esta nova realidade.” Até mais por parte dos advogados, esclarece. “Volta e meia, notava que entravam na sala de audiências à espera de encontrar um homem e quando lá chegavam e se deparavam com uma senhora, ainda por cima tão jovem, ficavam algo surpreendidos, às vezes meios desconfiados, por vezes notava-se até uma certa resistência em tratarem-nos por ‘senhora juíza’. Chamavam-nos ‘minha senhora’.”

De lá para cá, defende, a diferença é “brutal”, em múltiplos pontos. Desde logo porque se naquela altura “o elemento feminino era residual e só na primeira instância”, agora é habitual e “está em todas as instâncias”.

Portas que Abril ajudou a abrir. Mas o caminho da autodeterminação da mulher e da igualdade de género é ainda longo e tem-se percorrido lentamente. Basta ver que só em 1995 a violência doméstica foi criminalizada (e que todos os anos morrem dezenas de mulheres às mãos dos companheiros). Que só em 2008 o aborto foi legalizado. Que os salários das mulheres, nas mesmas funções exercidas pelos homens, continuam a ser 16% mais baixos. Ou, como lembra Manuel Carlos Silva, “persistem fronteiras e desigualdades em contextos domésticos e laborais, na composição da estrutura do emprego, nas oportunidades na promoção e progresso nas carreiras, sobretudo nas chefias de organizações e empresas”. Admite conquistas significativas, ainda assim. “Pode dizer-se que, com o 25 de Abril, se criaram condições para o reconhecimento dos direitos das mulheres e que graças aos movimentos feministas se deram avanços consideráveis, não só em termos jurídico-políticos como económicos e sociais: o acesso à educação e à investigação, as iniciativas nos pedidos de divórcio, o acesso ao mercado de trabalho em posições similares aos homens em vários setores.”

O divórcio e os filhos ilegítimos

A questão do divórcio, focada pelo sociólogo, era precisamente outro traço marcante do Portugal altamente retrógrado que subsistiu até ao ocaso do Estado Novo. Isto porque a Concordata de 1940 estabeleceu que ao casarem pela Igreja as pessoas ficavam automaticamente casadas pelo civil. E porque o matrimónio católico era então considerado indissolúvel, o que se traduzia num problema social de contornos graves. Fosse pelas relações que se prolongavam muito para lá do tempo de validade, resvalando por vezes para situações dramáticas, fosse porque a possibilidade de terminar uma relação e começar outra, até de ter um filho de um segundo relacionamento, algo que hoje nos parece banal, não era um cenário em aberto do ponto de vista legal. E então, durante décadas, multiplicaram-se os filhos ilegítimos, assim designados por não terem sido concebidos no seio de um casamento católico.

Sandra Benfica, 50 anos, uma das líderes do Movimento Democrático de Mulheres, reconhece que tardou a ter noção desta realidade. “A minha história é relativamente simples, mas só foi compreendida com uma certa distância temporal”, resume. Para a perceber é preciso recuar umas quatro décadas, àquele momento em que, na altura com dez anos, prestes a entrar no 2.º Ciclo do Ensino Básico, foi com o pai ao tribunal levantar o Bilhete de Identidade. “Lembro-me de ir com ele ali perto do Marquês de Pombal [Lisboa], e de acontecer uma coisa muito estranha. O meu pai saiu do tribunal com um papel na mão, sentou-se nas escadas, umas escadas de madeira, e desatou a chorar como se não houvesse amanhã. Foi muito assustador porque para nós os pais são invencíveis, nunca estamos à espera de os ver chorar. Lembro-me que chorei também e lembro-me de lhe perguntar o que se passava, mas ele não me explicou.” A compreensão da história chegaria “à la longue”, como diz Sandra. “O meu pai tinha tido um casamento anterior e numa fase inicial não se pôde divorciar. Então, quando fui tirar o Bilhete de Identidade e lhe deram o assento de nascimento, apesar de constar o nome do nosso pai, não deixava de haver a referência explícita à nossa condição de filiação, dizendo que éramos [Sandra tem um irmão gémeo] filhos ilegítimos. Bastardos.”

Sandra Benfica, 50 anos, foi considerada “filha ilegítima” porque o pai tinha tido um casamento anterior e numa fase inicial não se pôde divorciar. Sabe que o progenitor carregou aquela mágoa a vida inteira
(Foto: Gerardo Santos/Global Imagens)

Quarenta anos depois, já com a perceção clara da história que na altura lhe faltou, Sandra não tem dúvidas de que o pai, entretanto falecido, carregou aquela mágoa a vida inteira. Para ela foi diferente. Era muito pequena quando tudo aconteceu (nasceu em 1972, nem sequer tem memória do 25 de Abril), o impacto não é comparável, só mais tarde teve verdadeira noção da realidade. Mas aquela imagem do pai feito um farrapo nas escadas do tribunal, do herói da vida dela a desabar-lhe ali à frente dos olhos e ela impotente para o consolar, haveria de a definir. “A questão da discriminação imposta pelo Estado Novo, a violência daquela situação, o que o regime implicava no quotidiano das pessoas. Quando percebi o significado daquele momento as conquistas do 25 de Abril passaram a ter para mim um significado redobrado, mais pessoal. Foi um exemplo estruturante na minha vida.” Como estruturante foi um outro momento que, ainda catraia, partilhou com o pai. “Ainda na Primária, tive de fazer uma composição sobre as coisas mais importantes da vida e lembro-me de lhe perguntar quais eram. Ele respondeu: a liberdade, a fraternidade, a amizade.” E daí em diante Abril viveu nela também.