A volta ao mundo dos maratonistas anónimos

Filipa Elvas, assistente de bordo, não repete maratonas e está a preparar-se para a de Atenas. Vítor Dias, técnico de informática, tem 59 provas em 17 países e um blogue. Vera Fernandes, animadora de rádio, estreia-se em Nova Iorque, a 6 de novembro. André Robalo, jurista, vai a San Sebastián no próximo mês. O que os motiva? O que os move? Não é apenas a adrenalina a ferver no sangue. É mais do que isso.

Em 2013, dia 1 de maio, Filipa Elvas, assistente de bordo da TAP, foi a única mulher a cortar a meta da maratona da Grande Muralha da China, depois de sete horas e 50 minutos, 42 quilómetros, 20 564 degraus, muito calor, humidade máxima. Tinha 37 anos. Dois anos antes, em 2011, quando começou a correr, participou nas maratonas de Helsínquia e de Varsóvia. Em 2012, fez a de Miami e de Chicago. No ano da China, cortou a meta em Berlim e na Gronelândia, que venceu, tal como na Antártida, em 2018. Em cada prova, três objetivos. “Cruzar a meta, dar o melhor de mim em cada passo, ser feliz a correr.” E uma certeza. “A cabeça é o músculo mais importante do meu corpo.” A cabeça puxa o corpo como um motor de propulsão da partida à meta.

Há um antes e um depois. Em 2009, Filipa Elvas estava em trabalho num voo para Moscovo, um passageiro colega lia um livro sobre ciclismo, ela pedalava na altura, ele fazia parte da equipa de triatlo da TAP, palavra puxa palavra, garantiu-lhe que a inscreveria no regresso, quando aterrasse em Lisboa. Dito e feito. Uma boa experiência que não durou muito. “Adorava a equipa, o convívio, mas era a última a sair da água, parecia uma foca”, recorda.

Filipa Elvas dedicou-se à corrida em 2011. É assistente de bordo da TAP, não repete maratonas, tenta fazer duas por ano

Manteve-se dois anos, 2009 e 2010, até ao dia em que acompanhou a equipa à Quarteira, não ia fazer a prova. “Estava a observar as atletas femininas a sair da água e repeti para mim, não é isto que eu quero.” Nunca mais vestiu um fato de natação com o seu nome, dedicou-se apenas à corrida.” Língua de fora nos primeiros cinco minutos, no Jamor, ao pé de casa. Pouco depois, a primeira prova de atletismo, “Marginal à Noite”, oito quilómetros. Saiu de casa sozinha, banana na mão, nota de cinco euros na meia para o táxi. Mas não havia táxis, as estradas estavam bloqueadas ao trânsito, correu até à partida, de Caxias a Santo Amaro de Oeiras, quatro quilómetros antes de a prova começar. Oitavo lugar, oitava mulher a cortar a meta. Gostou. Duas semanas depois, a primeira prova de 15 quilómetros em Peniche, outro oitavo lugar. “E pensei, estou mesmo a gostar disto.” Um mês depois, estava num avião a caminho da meia-maratona do Rio de Janeiro. “Muito calor, muita gente, adorei.”

No fim, aquela paz interior. “Sinto uma felicidade tão grande que não como nada a seguir a uma maratona, alimento-me da felicidade de ter conseguido, fico a levitar uns dias.” É orgulho, é superação, é alegria. “Se uma maratona fosse fácil, eu não fazia. Gosto dessa adversidade, dessa dificuldade, até nas coisas da vida, de ir à luta, do esforço mental e físico”, diz Filipa de sorriso largo aos 46 anos.

Mais a norte, no Porto, Vítor Dias sente tudo isso. São 59 maratonas em 17 países – Viena, Atenas, Genebra, Amesterdão, Bucareste, Barcelona, Copenhaga, Paris, Berlim, entre outras. Todas terminadas, zero desistências, currículo imaculado. Mesmo assim, os pensamentos repetem-se. “Aos 30 quilómetros, penso não me meto mais nisto. Aos 35, digo sou maluco. Aos 42, quero cortar a meta.” Antes de começar a correr, pensava que ir a uma maratona seria tão provável como ir à Lua. Neste caso, a lei das probabilidades caiu por terra.

Na Antártida, em 2018, Filipa Elvas foi a primeira mulher a cortar a meta. A cabeça, diz, é o músculo mais forte do corpo

Vítor tem 54 anos, é técnico de informática na Câmara do Porto. Começou a correr há 15 anos, estava quase nos 40, umas voltinhas à volta do Dragão, nada de muito puxado, jogava futebol, corridas de vez em quando. Depois aquele clique que não se explica, a vontade de pesquisar, o querer saber mais. Compra livros da arte, debruça-se sobre várias temáticas, e cria o blogue “Correr por Prazer”, que faz 14 anos em dezembro, um misto de guia informativo e consultoria com listas de provas em todo o lado, crónicas das suas aventuras, com descrição de cidades, voos, dicas e conselhos. São mais de 12 milhões de páginas visualizadas até hoje. “Seja a primeira ou a que vamos fazer a seguir, é o desafio que nos move. Se fosse fácil, nós não íamos. É o saber se vamos conseguir fazer ou não no tempo a que nos propusemos.” Vítor Dias conjuga o verbo no plural. Ver 35 mil pessoas na mesma direção é coisa do outro mundo.

Família, trabalho, corrida

Vera Fernandes, locutora, animadora das “Manhãs da [rádio] Comercial”, está prestes a correr a sua primeira maratona fora do país, em Nova Iorque, a 6 de novembro. “Inscrevi-me numa agência de viagens especialista em maratonas. Fiquei em lista de espera e, no início do ano, recebi um email a dizer que tinha um dorsal à minha espera. Foi uma festa em casa.” Vai com o marido, Fernando, espanhol. As t-shirts, mandadas fazer a preceito, estão a postos com o nome de cada um e respetivas bandeiras, a de Portugal e a de Espanha. Levam ainda duas bandeiras gigantes para a chegada. É um desejo que vem desde 2015, depois da maratona de Lisboa, em que as lágrimas lhe caíram. É também uma forma de assinalar os 40 anos feitos no mês passado, um amor e dois filhos.

Fernando corria, Vera fazia grandes caminhadas. “Muitas vezes, ia a pé para o trabalho e chegava a fazer sete quilómetros de Telheiras a Campolide.” Em 2013, resolveu experimentar a corrida e pensou: “Se é para ser, que seja em grande”. Na primeira meia-maratona, ainda sem filhos, não sentiu aquela emoção que procurava. Essa sensação, saberia mais tarde, “seria uma consequência proporcional ao esforço”.

Com Nova Iorque no horizonte, imagina a chegada à meta, demora-se nesses momentos, treina quatro a cinco vezes por semana. Vera fala desse tempo. “Durante um treino longo, é possível passar por vários estádios: satisfação, desespero, alegria infinita, saturação. Como os treinos também são mentais, com o tempo conseguimos transformar momentos menos positivos em sensações boas, através de recordações ou projeções daquilo que poderá ser o futuro.”

Aos sábados de manhã, André Robalo tem a sua rotina, corrida marcada, ponto de encontro às 9.30 horas com um grupo de amigos. Sai de casa, quatro quilómetros a correr até ao local combinado, depois hora e tal pelo Parque de Monsanto, regressa a correr novamente pela estrada. Quando há maratona à vista, há pista nos planos, leia-se, treino rápido na pista de atletismo no Estádio Universitário, oito vezes mil metros. André Robalo, 46 anos, jurista, de Lisboa, prepara-se para a próxima maratona, a de San Sebastián, Espanha, a 23 de novembro. Quando viaja em trabalho, as sapatilhas vão sempre na mala.

André Robalo é jurista, faz treinos no Parque do Monsanto e na pista de atletismo do Estádio Universitário, em Lisboa. Vai à maratona de San Sebastián em novembro. Na foto, depois de cortar a meta da maratona de Sevilha em fevereiro deste ano

André Robalo viu o seu pai começar a correr por volta dos 40 anos. Volta e meia, participava numas corridas, nada sério, jogava futebol, padel. O tempo começou a encurtar para o desporto, há cinco anos decidiu focar-se na corrida. “Até que um dia pensei no desafio de fazer uma maratona.” Em 2018, fez a de Lisboa em três horas e 28 minutos, depois a do Porto, a de Helsínquia em outubro do ano passado, a de Sevilha em fevereiro deste ano em três horas e sete minutos. Menos de três horas é a sua meta. “Acabar é o primeiro objetivo, mas não me satisfaço, é uma questão de desafio e de superação pelo tempo”, admite. Corre cinco a seis vezes por semana, sozinho sobretudo, às horas que o trabalho lhe permite, seja às seis da manhã ou às sete da tarde. “Não tenho de combinar com ninguém, pego nos ténis e vou.” Liberdade total.

O desporto entranhou-se na vida de Filipa Elvas quando pediu uma bicicleta estática aos pais. Tinha 16 anos. Acordava cedo para pedalar todas as manhãs no jardim de casa durante uma hora. Manteve a rotina até aos 35, já em sua casa, no seu quarto. A partir daí, dedicou-se apenas à corrida. Hoje conhece os humores e as manhas, as barreiras emocionais e os obstáculos físicos das maratonas. Aos 31 quilómetros, diz, é o chamado muro para muitos atletas, a palavra desistir. “Neste momento, o foco, a concentração, a alegria e a força interior são fundamentais para levarem o corpo a continuar o seu caminho.” A assistente de bordo tem o seu próprio método. “Concentro-me em cada passo que dou, foco-me no presente, no momento em que estou, quilómetro a quilómetro.” Sempre atenta ao corpo, aos passos, à respiração. Em todas as provas, dá tudo de si. Em todas as cidades encontra beleza e encanto, paisagens e caminhos. E tem o seu museu com muitas recordações, com fotografias medalhas, diplomas, posters, num sítio que não era usado. “Os vizinhos, muito simpáticos, cederam a conduta do lixo com 55 anos que estava fechada.” E ali montou, num pequeno espaço, um museu aberto a quem ali mora.

Desafio, superação, necessidade

Vítor Dias participou na 123.ª maratona de Boston. “A de Boston é a maratona.” Sempre à segunda-feira, é feriado, multidões nas ruas, famílias inteiras, com copos de champanhe, arcas de gelados, bolos cortados às fatias, tudo e mais alguma coisa que oferecem a quem passa e a quem corre. Nos dias seguintes, a medalha é exibida com orgulho pelos participantes. Tem a sua em casa e essa corrida é daquelas para nunca mais esquecer.

Corre três a quatro vezes por semana, uma hora, mais coisa menos coisa, no Parque da Cidade, no Porto, ao domingo de manhã estica os quilómetros. Antes de uma maratona, treinos longos, de 30 quilómetros, para saber como está. É a adrenalina, é o foco, é a autoestima, a realização pessoal. Sente-se bem. “A corrida é que me dá tempo, vou a reunir comigo mesmo, organizo a minha vida a correr, organizo as ideias, tenho a vida mais organizada desde que comecei a correr. Quanto mais ando na rua, mais produzo no trabalho”, comenta. O prazer, esse, é eterno, para lá do dinheiro que se gasta, da espera pelas vagas, das inscrições com critérios mais apertados que exigem tempos feitos, da marcação de voos e hotéis.

Vítor Dias tem um blogue, “Correr por prazer”, com informações e crónicas das suas aventuras. É técnico de informática e a corrida passou a ter um papel importante na sua vida

Filipa fez 18 maratonas, não repete nenhuma, já correu no deserto da Jordânia, no Peru, em Berlim, Oslo, Roma, Davos, Atacama. A primeira foi em Helsínquia. “Entrei no quarto do hotel e estendi o equipamento, dez euros tudo, as duas bananas, o dorsal, tudo deitadinho como se fosse uma pessoa na cama ao lado.” Dormiu imenso na véspera, ligou para o serviço de quartos para um pedido especial: o cozinheiro que preparasse alguma coisa como se fosse fazer uma maratona. Apresentou-lhe um prato gigante de esparguete cozido com um peito de frango em cima. Correu três horas e 26 minutos, ficou em 31.º lugar entre 520 mulheres.

“O truque é passinho a passinho, sempre no meu ritmo, vou devagar, não estou interessada na velocidade e no tempo, mas tenho uma coisa, quando sinto que é o momento de atacar, ataco.” Na China, foi ao minuto 55, quando ultrapassou a atleta americana que viria a desistir. Na Gronelândia, foi ao minuto 54, quando passou a francesa; no deserto da Jordânia foi ao quilómetro 38, quando fintou a belga. Corre maratonas de trás para a frente. Filipa explica. “Faço a primeira metade muito devagar, a aquecer, vou a observar tudo. E, depois, na segunda parte, se vir que estou bem, com o corpo aquecido, dou tudo e ataco.” Leva sempre consigo uma Nossa Senhora que avó Alice lhe deu, uma bandeira de Portugal, um relógio que só conta os minutos e que vira ao contrário.

Neste momento, André Robalo anda à volta dos voos, a espreitar Bilbau e San Sebastián, a ver sítios, locais para visitar. “É um misto de desporto e de turismo.” A família acompanha-o nestas andanças, a mulher, Joana, a filha, Maria do Carmo, o filho, António. Há tempo para outras voltas. “É um momento importante, é um desafio, mas é também um momento de convívio e de conhecer outros sítios.”

Vítor Dias também não descura essa parte e a mulher e os dois filhos acompanham-no nestas andanças sempre que possível. “Junto o melhor de dois mundos: gosto de correr e gosto de viajar.” O que mais o fascina são os locais e as pessoas, não os recordes. “Conseguimos correr onde nos outros 364 dias do ano só andam carros”, observa. São estradas fechadas ao trânsito, cidades em suspenso.

Correr é uma emoção. “É uma alegria imensa”, frisa André Robalo, que corre por gosto, pelo desafio, pela superação, por necessidade também. “A corrida ajuda-me imenso a controlar a ansiedade, exige concentração, 15 a 30 minutos depois de um treino, o organismo fica diferente, mais descontraído.” Corre focado e sem auscultadores, tranquilamente.

Vera Fernandes sente que a corrida, em termos de cabeça, foi a sua salvação. “Quando o nosso foco sai da rotina, conseguimos voltar com outro ânimo, com outra disposição. Parece que é tudo mais fácil porque cada corrida exige sacrifício.” Sente o corpo mais saudável e definido, os treinos fazem parte da rotina. “Consigo contar pelos dedos as manhãs de fim de semana em que não acordei cedo para correr, mesmo de férias”, revela.

Vítor Dias viaja pelo Mundo para correr e conhecer pessoas e lugares

Filipa Elvas está a começar do zero, foi operada ao joelho esquerdo em 2019, joelho sem cartilagem. Em 2020, em plena quarentena, inscreveu-se na maratona de Atenas. “A autêntica, a número 1 do Mundo, a palavra maratona surge aí.” Falta pouco, é a 13 de novembro, a última foi em 2018, em Florença. Filipa treina há um mês e agora tem um joelho operado. “Há duas semanas, estava a correr na relva, às voltas num campo de futebol, não sei o que me deu, e fui para a terra batida. Foi o passo mais importante que dei desde 2019”, confessa. Corre em silêncio, sem música, com meias de compressão até ao joelho.

Aos 54 anos, Vítor tem uma ideia na cabeça, uma marato na por cada ano de vida. Leva cinco de avanço e quer chegar às 100. Filipa pensa no amanhã. “Daqui a uns anos, quando olhar para trás, vou agradecer todos os passos que dei a correr. Quando isso acontecer vou sentir muita saudade.” Vera tem um desejo. “Quero, acima de tudo, chegar bem, com saúde e feliz.” André quer estar na maratona de Berlim do próximo ano.