A violência normal
Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.
Crimes de guerra na Ucrânia, estalo de Will Smith a Chris Rock nos Oscars por uma piada, exonerado o capelão da Marinha e da estupidez castro-religiosa que defendeu os dois fuzileiros que estiveram no homicídio de um jovem da PSP – será que o Almirante “nunca bebeu uns copos?”. Tenho mais uma prova da triste testosterona à solta no Mundo: a pancadaria entre 20 jovens de 20 e poucos anos. Iam jogar à bola num torneio, agora estão no tribunal. Diálogos curtos mas deprimentes. Dois estão no banco dos réus. É dia de ouvir as testemunhas de defesa:
– O Nuno teve um papo-de-boca, o Nuno deu uma chapada no Bob. O Bob depois deu uma chapada no Nuno. O Hélder foi separar os dois. Deu-se a confusão. O Bob é que fez a ameaça. Disse no WhatsApp: “No dia do jogo falamos”.
– Porque é que o ofendido está acusá-los destas agressões?
– Não sei. Acho estúpido. Ele saiu de lá intacto.
A advogada de defesa fez-se comentadora desportiva:
– Não saiu… lesionado?
O Instituto de Medicina Legal diz que sim: múltiplas lesões provocadas por pontapés, murros. Um maxilar fendido, hematomas nas costas e, na queixa na Polícia, a ameaça “passa-me aí a faca”, mais os insultos conhecidos desde antes de Gil Vicente até hoje.
– O Bob impôs a forma de pagar. Não chegámos a acordo.
– Como se diz em português, estava a pôr a unha?
3,5€ (era a dívida!) para o pré-combinado aluguer do campo. Mas foi Bob, o queixoso, quem levou os desconhecidos para a batalha:
– Vinham de calças de ganga, sem equipamentos, via-se mesmo que não vinham para jogar à bola.
A testemunha 2, um rapaz desinibido, só lá estava porque fora chamado à pressa: havia falta de jogadores. Chegou ao campo e:
– Eles eram tantos ou mais do que nós. Estavam todos sentados no banco. Quando o ofendido começou a bater no Nuno, eles levantaram-se todos e vieram. Não estavam equipados.
Esta de ser o ofendido a bater era o cúmulo de muitas contradições.
– Violência?! Tanto um como o outro se levantaram e seguiram pelo próprio pé! Eles vieram na nossa direcção. E nós, pronto!, fomos ter com eles…
– E agrediram-nos?, perguntou a procuradora.
– Nós, agredir, agredir, não…
– Quantas pessoas eram ao todo?
– Não sei dizer, nove ou dez pessoas eram. Nós éramos seis.
– Então vai responder o que é que os outros vos fizeram a vocês, uma vez que o Nuno e o Bob se agrediram e os amigos vieram para cima de vocês, continuou a procuradora.
– O suposto era nós tentarmos amenizarmos aquilo, só que não dava, não é? Uns mandavam umas bocas, depois vinham uns… vinham os outros para cima deles… os outros vinham…
– Mas o que é que fez concretamente?
– Os dois começaram a porrada e nós conseguimos separá-los.
– E depois andaram à porrada.
– Sim.
– Mas à porrada, como?
– Com socos e pontapés, como na porrada é normal. Acho que foi uma situação normal.
– O problema hoje é que as pessoas pensam que é tudo normal! Socos, pontapés, porrada, tudo é normal!
– Desculpe, você tem de ser mais concreta, você está a dizer…
– Desculpe, o senhor não fala assim comigo! Que agressões é que viu do Nuno para o Bob, e do Bob para o Nuno?
– Murros de uma parte, murros da outra. Pontapés de um lado, pontapés do outro. Pernas de um lado, pernas do outro.
– Disse que o senhor Bob seguiu a andar e a fazer a vida dele. Isso, concretamente, é o quê?
– É uma pessoa que se consegue pôr de pé, consegue estar agarrado à namorada e agarrado aos amigos todos dele na mesma, e fazer a vida dele.
– Portanto, na sua óptica, as agressões foram coisas poucas.
– Sim, e se consegue voltar a insultar as pessoas depois do ocorrido, acho que está bem.
Está bem, está. Está-se mesmo a ver que está.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)