A véspera da liberdade anunciada

A Revolução dos Cravos foi saudada em festa pelo povo que saiu às ruas para celebrar a liberdade

Houve sempre resistentes. Homens e mulheres nunca conformados e nunca vergados a uma ditadura que lhes amordaçava a voz, mas o pensamento jamais. A liberdade rompeu na madrugada de uma quinta-feira. Em Abril de 74.

24 de abril de 1974, é quarta-feira, a última desse mês, é dia de trabalho, cada um na sua vida, a manhã desponta e, nessa altura, alguns, poucos, muito poucos, já sabem a senha que será transmitida na rádio num certo programa, precisamente entre os 20 e os 22 minutos após a meia-noite, à primeira hora do dia 25. “Grândola, vila morena”, a canção de Zeca Afonso, é o sinal para a revolução começar, a primeira estrofe misturada com a leitura de outros textos para que só perceba quem sabe. Momentos antes, pelas 22.55 horas, do dia 24, há outra canção que se ouve na rádio e que é o código para preparar a saída dos quartéis. “Faltam cinco minutos para as 23 horas. Convosco Paulo de Carvalho com o Eurofestival 74: ‘E depois do adeus’.” A canção toca. O golpe militar para derrubar Marcelo Caetano do poder, para acabar com a ditadura de 48 anos instituída por Salazar, está em curso. Ninguém pode travar a liberdade.

O dia 24 será longo, o dia seguinte ainda maior. O Movimento das Forças Armadas (MFA) anda a trabalhar há algum tempo, algumas tentativas frustradas pelo caminho, agora as indicações circulam em envelopes fechados entre militares de confiança, avessos ao regime, cientes do que vai suceder. Conscientes de que uma contrarrevolução é sempre possível. Mas aquele telegrama que confirma o início das operações está escrito e não volta para trás. As instruções estão na cabeça e no papel. Cada um sabe o que tem a fazer, por onde se mover, a missão que tem nas mãos.

Noite posta, aquele 24 de abril já ia comprido, pelas dez da noite, Otelo Saraiva de Carvalho, o comandante, o cérebro das operações, chega ao Regimento de Engenharia 1, na Pontinha. Os oficiais estão prontos para formar o posto de comando do MFA nas próximas horas, madrugada adentro.

Os corações batem cada vez mais forte à medida que as horas do dia 24 avançam. As manobras aeronavais da NATO estão marcadas para o dia 26 no Mediterrâneo, o porto de Lisboa recebe várias unidades alheias ao que vai acontecer (ou talvez não, não se sabe bem). Horas antes da mudança de regime, há instruções para que os exercícios sejam feitos apenas com navios estrangeiros. O dia avança, trocam-se impressões baixinho, afina-se a engrenagem, confirmam-se os códigos que vão passar na rádio, há encontros entre militares que estão ao comando das operações pela calada das horas.

A Praça da República, no Porto, foi palco de manifestações de alegria

Pelas 11 da noite, é hora de comunicar o plano a oficiais, sargentos, furriéis e cabos. Há comandantes que são presos porque a revolução não pode ter inimigos. É a véspera da liberdade ansiada. O capitão Salgueiro Maia reúne as tropas na Escola Prática de Cavalaria de Santarém e sabe qual o seu papel: ocupar o Terreiro do Paço, cercar o Quartel do Carmo, obrigar Marcelo Caetano a render-se. A 20 de abril, quatro dias antes, três textos políticos chegam à versão final. O programa do MFA, o protocolo secreto a assinar pela Junta de Salvação Nacional e pelo MFA, que não aconteceu, e a proclamação do movimento ao país. Quem sabia não prega o olho, não vai à cama. Há uma revolução para fazer.

25 de abril, ano de 1974, quinta-feira, controlam-se pontos estratégicos, trocam-se senhas. Pelas três da manhã, a RTP é controlada pelo MFA e manda-se o recado para o posto de comando. “Daqui é maior de Lima Cinco. Acabámos de tomar Mónaco sem incidentes.” O Rádio Clube Português também está controlado. “Aqui grupo 10. Informo México conquistado sem incidentes.” A Emissora Nacional é Tóquio, o quartel-general é Canadá. Tudo tem o seu código. O aeroporto de Lisboa, tomado pelas quatro da manhã, é Nova Iorque sob controlo. Pelas 4.20 horas, o Rádio Clube Português já é posto de comando, Joaquim Furtado lê o primeiro comunicado do MFA. Pede-se calma à população. Vinte minutos depois, novo comunicado, recomenda-se prudência às forças militares.

Às cinco da manhã, o chefe de Governo, Marcelo Caetano, recebe um telefonema. “Senhor presidente, a revolução está na rua.” As comunicações são codificadas. Pelas seis da manhã, Salgueiro Maia informa o posto de comando. “Aqui maior de Charlie Oito. Informo que ocupámos Toledo [Terreiro do Paço] e controlamos Bruxelas [Banco de Portugal] e Viena [Rádio Marconi].”

O Sol está prestes a nascer e há movimentações no país. Prepara-se a tomada do Forte de Peniche a partir da Figueira da Foz. Em Vila Nova de Gaia, cortam-se os acessos à ponte da Arrábida, em Vendas Novas, no morro de Cristo Rei, paredes-meias com Lisboa, prepara-se a ocupação da Força Aérea de Monsanto e o Terreiro do Paço.

Os ouvidos colam-se à rádio, o MFA vai fazendo o ponto de situação. Às 11.45 horas, garante que a hora da libertação está para breve. Ao início da tarde, 14.30 horas, nova atualização, tudo de acordo com as previsões, alguns objetivos já atingidos, várias figuras do regime sob prisão.

O Quartel do Carmo continua cercado e é ali que Marcelo Caetano se renderá. António Spínola assume o Governo e avisa que é preciso trabalhar. Pelas oito da noite, o MFA autoproclama-se autor da Revolução, 21 horas depois do primeiro sinal para o início das operações. O regime cai, o povo está na rua, a liberdade chega.