A saída da pobreza é uma porta demasiado estreita

Ana Cristina Matos libertou-se de décadas a fio de agressões e subjugação, arranjou trabalho e uma casa, mas nunca deixou de ser pobre. Está desempregada e de coração nas mãos. Tânia chegou a sustentar dois filhos com um salário mínimo. Hoje vive mais tranquila, mas deve-o em parte ao salário do marido. Osvaldo Pinto deixou a escola ainda antes de acabar o 1.º Ciclo, tem psoríase, chegou a viver dois anos numa carrinha, com a mulher e os filhos. Arranjar trabalho continua a ser um pesadelo. São três dos casos focados num estudo que, ao longo de dez anos, acompanhou dezenas de pessoas em situação de vulnerabilidade no concelho de Lisboa.

A dureza da vida de Ana Cristina Matos foi-lhe fadada logo aos primeiros anos de vida. Nasceu numa família humilde, o pai morreu-lhe aos sete anos, a mãe perdeu-se numa vida de desvario e alcoolismo. Ela começou a namorar aos 13 anos, ele era mais velho, já tinha 21, aquele amor havia de ser uma chaga para a vida toda. Pouco depois engravidou, saiu de casa, foi com o companheiro para casa de sogra, um cubículo de 14 metros quadrados cravado em Alfama, a casa de banho era uma pia em plena varanda, a higiene não morava ali. “Sempre vivi numa casa humilde, mas limpa. Depois, quando fui viver com a mãe do meu ex-marido, ela tinha uma série de complicações, desde esquizofrenia até um problema na bexiga, então havia naquela casa um imenso cheiro a urina.” E aquele odor nauseabundo que se lhe ia colando à pele e à vida não era o pior. Pior foi quando ao fim de uns meses ela, com os mil cansaços da gravidez, adormeceu a lavar roupa, caiu redonda por cima do alguidar, acordou com uma chapada tão grande que ainda hoje traz aquele estalido do ouvido a ecoar como assombro. “Foi a primeira vez que me bateu. Quis logo voltar para casa da minha mãe, mas ele pediu muita desculpa, e a minha mãe tinha medo dele, acabou por me entregar de mão beijada a um agressor”, atira. E a crueza destas palavras fica a pairar na conversa por segundos.

Foi a primeira de muitas chapadas. “Inventava coisas para me bater. Ou era porque queria outra camisa, ou era por ciúmes, porque sempre foi muito possessivo. Lembro-me de estar a dar mama ao meu filho e de ele me puxar os cabelos e dar murros na cabeça.” Como se não bastasse, fechava-lhe a porta de casa, não a deixava sair sozinha, quando engravidou da segunda filha, aos 15 anos, quase não a deixou ir às consultas. No final da gravidez, ele deu-lhe uma tareia tão grande que a cria acabou por nascer prematura. “Fui ter a minha filha num estado lastimável e as enfermeiras viram tudo, mas na altura a violência doméstica não era crime público [passaria a ser em 2000].” E a vida foi seguindo assim. Às vezes ela fartava-se e corria para casa da mãe, mas voltava sempre. Até porque ele ameaçava que lhe tirava os filhos. Então aguentava: os cortes de cabelo propositadamente “horríveis” para ela não ser tão bonita, as “interdições” de certas partes da casa – Ana Cristina viveu anos sem poder fazer algo aparentemente banal como sentar-se no sofá ou tomar um banho quente durante a semana -, a proibição de trabalhar, os insultos, as agressões. Com colheres de pau, com vassouras, com o que estivesse à mão. Até a sogra se metia ao barulho para a defender. “Um dia matas a rapariga”, dizia ao filho. Mas depois apanhava ela também.

Uma vez, tinha Ana Cristina 18 anos, ele bateu-lhe com a vassoura na cara com tanta força que lhe rebentou o olho. “Rasgou-me a pálpebra e fiquei ali com tudo pendurado. Só me lembro do meu filho de cinco anos a meter as mãos nos olhos para não ver.” Aflito, o agressor lá assentiu que fossem para o hospital, mas foi a viagem toda a intimá-la. “Não digas que fui eu que ficas sem os teus filhos.” E ela voltou a calar-se. Inventou até uma história rocambolesca para justificar aquele episódio que a cegou para sempre. No hospital, descobriu que estava grávida de um terceiro filho. Daí em diante, também graças à intervenção de um padre que foi “como um pai”, ele não lhe voltou a bater. “Mas continuava a violência psicológica, estava constantemente a rebaixar-me.” Depois, era a miséria que lhes enformava os dias. “Ele ganhava o salário mínimo e era um gastador compulsivo. Às vezes conseguia gastar tudo num dia. E não me deixava trabalhar. Chegava a não ter um litro de leite para dar aos meus filhos. Mamaram todos até muito tarde por causa disso. Um deles até aos cinco anos. E volta e meia lá ia o meu filho mais velho pedir uma caneca de azeite para pôr nas batatas com ovos, que era o que comíamos. Não havia fruta nem legumes.” Muitas vezes, só a caridade alheia e a boa vontade das instituições de ação social lhes permitiam sobreviver.

O cenário agravou-se quando ele se viu forçado a meter reforma, após “sucessivas baixas psiquiátricas”, e acumulou dívidas junto de empresas de crédito, para responder aos indomáveis instintos de compras supérfluas. Uma vez, num corredor da casa que também lhe estava “interditado”, mas que por lapso ficou aberto, Ana Cristina foi descobrir uma tonelada de bugigangas acumuladas, quase todas por abrir, e um armário repleto de fatos Hugo Boss e sapatos das melhores marcas. “Além dos imensos quadros que comprava. Chegava ao ponto de ter quadros repetidos para o caso de um se estragar.” A situação tornou-se de tal forma insustentável que lá teve de aceitar que ela fosse trabalhar. A fazer limpezas, sobretudo. Primeiro conseguiu umas horas, depois um contrato. Só que os rendimentos continuavam a ser inteiramente monopolizados pelo marido. “Ele é que ficava com o meu cartão. Dava-me um euro por dia para tomar um café. E cheguei a ter de vestir as cuecas dele, porque entretanto fiquei obesa, já nada me servia e ele nem umas cuecas me comprava.”

Até que ao fim de anos e anos daquele martírio, Ana Cristina disse basta. Fez queixa, foi para uma casa-abrigo, encheu-se de coragem e recomeçou. Com a ajuda da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, conseguiu uma casinha só para ela, voltou a encontrar o amor, juntou-se com o novo companheiro. Por essa altura, era auxiliar de saúde num hospital de Lisboa. Mas, com a ideia de fugir aos preços exorbitantes das casas na capital, decidiram mudar-se, ela mais o novo parceiro, para Arganil (distrito de Coimbra), para casa de uma prima que não lhes cobraria renda. A princípio, com Ana Cristina a trabalhar num lar de idosos, ainda lhes pareceu uma solução airosa. Mas em fevereiro do ano passado perdeu o trabalho. Desde então tem vivido com o subsídio de desemprego, 460 euros por mês, mais coisa menos coisa. Isto apesar das várias formações que foi fazendo – primeiro, através do programa “Novas Oportunidades”, concluiu a escolaridade obrigatória, depois fez cursos de técnica auxiliar de saúde e de técnica auxiliar de infância. Para piorar, o subsídio de desemprego já termina em agosto. “Ando aqui com a coração nas mãos.” Ou como a sina da pobreza parece teimar em persegui-la.

De perfil em perfil, sem nunca saltar fora

Ana Cristina Matos, 54 anos, natural de Lisboa, é uma das dezenas de pessoas que durante dez anos integraram um “painel” estudado a fundo pelo Observatório de Luta contra a Pobreza da Cidade de Lisboa (iniciativa da EAPN Portugal/Rede Europeia Anti-Pobreza, com o apoio da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, da autarquia lisboeta e da Fundação Montepio) e pelo Centro de Estudos sobre a Mudança Socioeconómica e o Território (DINÂMIA’CET-IUL), do ISCTE. O resultado foi o “Barómetro de pessoas que se encontram em situação vulnerável no concelho de Lisboa”, que será publicamente apresentado a 29 de junho. Uma das principais conclusões é precisamente a dificuldade crónica em sair de uma situação de vulnerabilidade, a tal que tem marcado a vida de Ana Cristina, mesmo depois de ousar libertar-se de um agressor e entrar para o mercado de trabalho.

Para uma leitura mais clara dos resultados, importa explicar os contornos deste barómetro. Desde logo, sublinhar que se trata de um estudo longitudinal qualitativo (e não quantitativo), que começou por se debruçar sobre um total de 74 pessoas, distribuídas por duas áreas da cidade de Lisboa onde haviam sido detetados elevados índices de vulnerabilidade – zona histórica e orla norte – e com seis perfis diferenciados: desempregados, cuidadores informais, incapacitados para o mercado de trabalho, trabalhadores pobres, idosos e desafiliados. As primeiras entrevistas foram feitas em 2011, tendo-se repetido posteriormente em 2014, 2017 e, por último, em 2021. Neste último ano, “restaram” 43 dos 74 elementos iniciais do painel. “Ou porque mudaram de números e de morada e lhes perdemos o rasto, ou porque emigraram, ou porque houve uma situação de falecimento, ou simplesmente porque houve uma recusa efetiva em continuar a integrar o estudo”, esclarece Sónia Costa, coordenadora do estudo. E é nestes 43 que se alicerçam os resultados.

O ex-companheiro de Ana Cristina Matos acertou-lhe em cheio com a vassoura num dos olhos e cegou-a para sempre
(Foto: Adelino Meireles/Global Imagens)

Voltando então à primeira grande conclusão do estudo. “Na maior parte dos casos que estudámos o que acontece é que as pessoas se vão movendo dentro dos vários perfis [os seis perfis de vulnerabilidade estabelecidos a priori, já mencionados] sem nunca conseguirem sair realmente da situação de pobreza”, destaca Sónia. A socióloga e investigadora do ISCTE adianta ainda que, mesmo nos casos em que o limiar de pobreza é ultrapassado (sete em 43), as condições destas pessoas continuam a estar envoltas em “grande fragilidade”. “Porque regra geral, quando isso acontece [quando um dado agregado familiar consegue superar o limiar da pobreza], há essencialmente duas razões que o explicam. Ou a acumulação dos rendimentos com certas prestações sociais ou alterações do agregado familiar. Um filho que sai de casa, por exemplo. Ou seja, os rendimentos não se alteraram, mas a fórmula de cálculo reduziu. E portanto há uma melhoria da situação, mas não é uma garantia efetiva de saída da condição de pobreza.”

Tânia (Tânia não é o nome verdadeiro, mas prefere ser chamada assim, até pelo estigma que vem com este assunto) é um dos sete elementos do painel que encaixa nos “saídos da pobreza”. Estudou até aos 16 anos, só foi até ao oitavo ano de escolaridade, nessa altura chumbou e não quis saber mais de escola. A mãe fez-lhe então um ultimato: “Se não queres continuar na escola, vais trabalhar”. E assim foi. Começou a trabalhar numa loja de perfumes, depois em lojas de roupa, e assim andou vários anos, sempre com o ordenado mínimo. Aos 17 casou, aos 18 teve o primeiro filho, aos 23 o segundo. Com 30 e poucos anos, separou-se e viu a vida a estreitar-se. Mas não se ficou. Concluiu o 3.º Ciclo do Ensino Básico e fez formação profissional, em auxiliar de geriatria, começou a trabalhar como ajudante de lar e centro de dia. Em 2011, ano em que foram feitas as primeiras entrevistas deste estudo, tinha ela 40 anos e dois filhos a cargo, auferia um salário de 620 euros, que complementava com uma pensão de alimentos (paga pelo pai) de 200 euros. Nessa altura, encaixava então no perfil de “trabalhadora pobre”. “Não era muito, mas tínhamos o pão nosso de cada dia, como eu costumo dizer.”

Entretanto, em 2012, reconciliou-se com o ex-marido, teve até um terceiro filho. Pelo que, em 2014, o segundo momento do estudo, encaixava já no curto leque dos “saídos da pobreza”, muito graças ao salário do companheiro, trabalhador na área da construção civil, que já na altura auferia 1500 euros. Desde então, mesmo com o cancro do marido (entretanto recuperou) e alguns problemas de saúde do filho mais novo, tem vivido acima do limiar da pobreza. Continua a ganhar pouco mais do que o salário mínimo, mas faz parte dos quadros da instituição para a qual trabalha. E isso não é de somenos. “Se fosse à procura de outro trabalho sei que provavelmente ganharia mais, mas corria o risco de ao fim de um tempo chegar ao fim do mês e não receber. Tenho colegas que vão para uma coisa melhor e depois corre mal. Ou porque o lar é ilegal e fecha. Ou porque deixam de receber. A estabilidade é muito importante.” E o marido, que passa grande parte do tempo a trabalhar no estrangeiro, continua a ganhar bem, o que lhes permite, a ela e aos dois filhos com que ainda vive, um certo desafogo. “Temos uma vida muito estável”, considera. Sónia, a coordenadora do estudo, admite que o caso de Tânia é, entre todos os que foram considerados no barómetro, a “situação mais estável”, mas mostra que mesmo esta estabilidade é relativa. “Bastaria aqui uma nova rutura com o marido para voltar à mesma situação”, argumenta, para ilustrar a fragilidade de que falava há pouco.

Uma teia intrincada de fragilidades

Outra das grandes conclusões apontadas por este estudo, salienta Sónia Costa, é que há, em todos estes casos, um “acumular de vulnerabilidades” que dificultam a saída da situação de pobreza. Habilitações profissionais frágeis, problemas de saúde (dos próprios ou de alguém do agregado familiar), baixa escolarização. Como uma teia castradora que parece arrastá-los insistentemente para a precariedade e as dificuldades financeiras. A coordenadora do estudo dá particular ênfase a uma “relação muito forte entre a pobreza e a saúde”. “Por um lado, a saúde condiciona a vida das pessoas, pela vulnerabilidade que comporta, também a nível profissional, por outro, a vulnerabilidade destas pessoas também condiciona a saúde.” Porque as dificuldades com que vivem acabam por empurrá-los para a aceitação de trabalhos que, não raras vezes, lhes agravam as complicações de que já padecem. É um intrincado círculo vicioso.

A investigadora aponta ainda o “fracasso do sistema escolar”. “Percebemos nitidamente que nos casos de pessoas que advêm de famílias com percursos de pobreza, a escola não ajudou a combater as desigualdades, pelo contrário. A escola acaba por transformar as desigualdades sociais em desigualdades escolares. E depois há aqui uma dimensão fulcral, relacionada com o trabalho.” Que se prende com a forma como as baixas qualificações destas pessoas se traduzem numa inserção no mercado de trabalho muito débil. “É um contingente desqualificado, que tem uma inserção no mercado de trabalho precário, com ausência de contratualização, com trabalho mal pago. E o domínio da formação profissional é outra das fragilidades. Há poucos exemplos do nosso painel em que a formação profissional se converteu em oportunidades de emprego reais.”

O caso de Osvaldo Pinto, 36 anos, de etnia cigana, é um bom exemplo da tal teia de vulnerabilidades. Sofre de psoríase grave, largou a escola sem sequer concluir o 1.º Ciclo do Ensino Básico porque teve de ajudar em casa, tem poucas qualificações profissionais. Foi vendedor ambulante durante dez anos, casou com 22 anos, teve dois filhos logo a seguir, hoje já são três. Viveu primeiro com os sogros, depois passou uns tempos numa casa ocupada ilegalmente, até ser expulso e ter de se mudar, ele mais os filhos, para uma carrinha. “Passámos mal. Fome não, porque as minhas vizinhas são muito boas senhoras, mas para os banhos e tudo era muito complicado. Tínhamos de ir aos balneários públicos.” Só em 2019 garantiu, por fim, uma habituação social.

Osvaldo Pinto está desempregado e tem sobrevivido à custa do RSI
(Foto: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens)

Em 2011, data da primeira entrevista, estava desempregado, recebia RSI, frequentava o programa “Novas Oportunidades” e um curso de jardinagem. Em 2014, continuava sem trabalho, ia fazendo uns biscates aqui e ali, tinha concluído o quinto ano de escolaridade. Entre 2016 e 2020, teve por fim um trabalho estável, como jardineiro, a tempo inteiro e com vínculo contratual. Mas depois veio a covid e voltou para as malhas do desemprego. O subsídio esfumou-se há dois ou três meses, continua só a receber o RSI, a mulher nunca trabalhou, não chegou sequer ir à escola. “Tenho sobrevivido com isto até conseguir mais alguma coisa.” Para piorar, a psoríase atacou em força, Osvaldo jura que tem grande dificuldade “em mexer as mãos e os pés”.

Para já, o plano é voltar a estudar, tentar pelo menos acabar o 9.º ano (só tem o 5.º). Depois, gostava de trabalhar como “mediador de escolas”. “Ajudar os miúdos de etnia cigana a andar na linha”, especifica. Mas continua a sentir que o estigma lhe fecha inúmeras portas. “Muitas vezes têm anúncios a dizer que precisam de funcionários e quando lá vou dizem-me que entretanto já arranjaram.” A história de Osvaldo valida outro aspeto salientado pela coordenadora do estudo. O facto de haver variáveis que “inflacionam ainda mais” as condições de vulnerabilidade destas pessoas. Uma delas é a etnia. Outra prende-se com o género. O que se percebe no caso das cuidadoras informais, por exemplo. E quando se conjugam as duas variáveis o fenómeno exponencia-se. “Basta ver que as duas mulheres ciganas que temos no estudo não sabem ler nem escrever.”

Sónia Costa realça ainda uma terceira grande conclusão: a “desarticulação entre as políticas de emprego e de ação social”. Tanto a nível quantitativo como qualitativo. “Por um lado, há uma desadequação dos montantes auferidos, por outro, uma fraca qualidade de afetação dos recursos disponibilizados”, concretiza a investigadora, que põe o dedo na ferida. “Há um conjunto de recursos muito formatados, com uma intervenção de cariz assistencialista, como a disponibilização de bens alimentares, as prestações pecuniárias. Mas nada disto é suficiente para que a pessoa possa dar um salto. É necessário um outro tipo de acompanhamento que toque em diferentes áreas e potencie a reinserção.”

Osvaldo Pinto gostava de acabar a escolaridade obrigatória e de ser “mediador de escolas”
(Foto: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens)

Isabel Guerra, também investigadora do DINAMIA’CET-IUL, além de consultora do estudo, chama ainda a atenção para outras nuances particularmente relevantes. “Há quase sempre uma tentativa de culpabilizar os mais pobres por não estarem inseridos no mercado de trabalho. A questão é que o emprego é um fenómeno estrutural que escapa ao controlo individual e até dos países, porque as ofertas de emprego dependem hoje das dinâmicas globais.” A investigadora faz notar, por exemplo, que, ao longo dos dez anos sobre os quais incidiu o estudo, praticamente todos os elementos do painel estiveram inseridos no mercado de trabalho, “por sua própria iniciativa”, sobretudo no período que se sucedeu à crise. “Ficámos espantados porque mesmo as pessoas com problemas de saúde acabaram por conseguir. Isto mostra que quando há uma oferta adequada, essas pessoas têm capacidade e vontade de se inserir no mercado de trabalho.”

Isabel Guerra alerta ainda para o facto de haver muitos casos, sobretudo envolvendo pessoas que têm mais handicaps (“Por exemplo, as mulheres que têm pessoas a cargo”), em que o mercado trabalho formal não funciona. “A oferta simplesmente não se adequa. Em termos de horários, de rendimentos, de localização. Muitas vezes não se adequa sequer às outras tarefas que recaem sobre as mulheres.” Este ponto acaba por estar em linha com um outro, que se prende com o facto de haver uma percentagem muito significativa de trabalho informal. Empregadas de limpeza, trabalhadores da construção civil, transportadores (como os estafetas da Uber, por exemplo). “Depois, não tendo laços formais não têm medidas de proteção. Isto foi muito nítido no período da covid.” E assim a pobreza vai seguindo ao ritmo de um rolo compressor.