A possibilidade do Bem
Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.
Questionados sobre a melhor primeira pergunta a fazer um interlocutor-tipo, profissionais de diferentes áreas divergem. O técnico de recursos humanos tem tendência para começar por uma avaliação da empatia do candidato: “Quem é o seu herói?”. O psicoterapeuta pode abrir com aquilo que o paciente julga ser o verdadeiro problema: “O que levou a procurar aconselhamento?”. O vendedor costuma conduzir o cliente ao lugar a que chama “zona de conforto”: “Que tal correu o fim-de-semana?”.
Eu estou convencido de que conheço uma pergunta capaz de abrir todas essas portas de uma vez: “Gosta do Natal?”. Se a pessoa gosta do Natal, está tudo fundamentalmente bem com ela. Se não gosta, o passo seguinte será decidir se devemos ter pena, medo ou apenas fascínio por ela. Já se o Natal lhe é indiferente, não tem ponta por onde se lhe pegue. Principalmente caso venha a socorrer-se da ideia de que o Natal “é só comércio”, o que equivale a dizer que o futebol é só bola ou a música só apitos e batuques. Nelson Rodrigues chamar-lhe-ia “um idiota da objectividade” – pior cego é aquele que só vê as luzinhas do shopping e o vermelho da Coca-Cola.
Felizmente, sempre gostei do Natal. Passei-o nos Açores e em Lisboa, com a minha e com outras famílias, em abundância e em escassez. Mesmo os menos felizes foram bonzinhos. Bastava-me olhar pela janela, descer e subir as escadas do prédio, cirandar pelas ruas. Havia ópera nos teatros, música de câmara nas igrejas. Os comerciantes que fechavam os últimos estabelecimentos sorriam. Homens manifestamente maus caminhavam direitinhos rua abaixo, com a filharada à volta, sem chegar a pontapear um gato. E, quando enfim tudo se aquietava, os sons do vento no meu rosto e dos meus próprios passos na calçada fundiam-se com os que, ainda assim, me chegavam de detrás das janelas, furtivos e esperançosos, como uma possibilidade do Bem.
Quanta literatura há no Natal.
Portanto, sim, sou natalício. E a Marta também. Este ano quis enfeitar a casa logo em Novembro. Toda a vida se empenhou em negociar com os pais novas fasquias para o fervor da consoada doméstica. E, depois de a mãe morrer (penso que não se aborrecerá se eu o contar aqui), foi passar a quadra com a família do Algarve, menos dada à festa, e levou uma árvore consigo no autocarro – só para que o Natal não deixasse de ser Natal.
Penso na Marta com aquela árvore ao colo, Alentejo fora, e comovo-me muito. Como ela talvez se comova se eu lhe contar do ano, pouco depois do grande terramoto, em que os meus primos, que tinham tios na América, receberam um monte de comboios eléctricos, tão lindos que ainda hoje me lembro deles, e eu, perante o meu pandeiro com rebuçados, chorei dias seguidos porque era mau e o Pai Natal tinha razão em não gostar de mim.
Mas essas são outras mitografias. Agora temos a nossa própria família – seremos nós a construir a dela. Este é já o nosso segundo ano. A casa tem luzes na janela, uma árvore, um presépio, três meias penduradas. Há presentes até para os cães. O Artur começa a reagir às luzes coloridas. E eu mal posso esperar por vê-lo abrir (pronto, por podemos abrir diante dele) o primeiro dos álbuns de Schulz que lhe vamos oferecer anualmente.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)