Margarida Rebelo Pinto

A perpétua tarefa da existência


Rubrica "Partida, largada, fugida", de Susana Romana.

Sísifo sobe a montanha, tanto faz se tem frio ou fome, se está cansado, se chove ou se o calor do sol a pique lhe atrasa o passo. Sobe a montanha porque tem de o fazer, em silêncio e em solidão, só ele sabe o quanto lhe custa.

Um entre mil perigos das novas tecnologias aparece todas as manhãs no visor do meu smartphone, sob a forma de uma fotografia resgatada das memórias, entre várias outras, do mesmo dia, ou não. Aquela viagem a Praga, uma patuscada entre amigos, o último mergulho do verão na praia do Barril, a travessia da Sierra Madre del Sur, a família reunida no Natal quando o meu pai ainda era vivo e conseguia estar na sala, selado na cadeira de rodas que manobrava com precisão e mestria, encolhido pela doença e pelo cansaço de a carregar. Somos aquilo que vivemos, o que é ao mesmo tempo maravilhoso e trágico, belo e triste, porque o presente é uma mistura de todos os tempos, incluindo o tempo paralelo, um lugar secreto e onírico onde aconteceu tudo aquilo que não vivemos e que o coração, a imaginação ou a teimosia acreditaram nos estar destinado.

O problema é que o cérebro não distingue o momento presente de uma recordação. Acrescem a tal certeza científica, duas noções de escritora empírica: o tempo é mais cíclico do que linear e a lei da gravidade também se aplica às recordações. O mito de Sísifo que todos os dias sobe a montanha carregando uma pedra às costas e todos os dias a pedra rola até ao sopé, obrigando-o a voltar atrás para recomeçar a perpétua tarefa, é uma das mais sábias metáforas da existência. Sísifo sobe a montanha, tanto faz se tem frio ou fome, se está cansado, se chove ou se o calor do sol a pique lhe atrasa o passo. Sobe a montanha porque tem de o fazer, em silêncio e em solidão, só ele sabe o quanto lhe custa. A cada um cabe o mistério das suas dores, por entre os passos, por entre os ossos.

Quando os nossos filhos crescem e começam a voar, inundamos as redes sociais com fotografias antigas; o primeiro dia de escola, a fase desdentada, ou quando os braços tinham o tamanho certo para agarrar o nosso pescoço como um colar de amor e de afeto. Confrontados com o ninho vazio, demoramos meses, anos, ou uma vida inteira a desmanchar o quarto que lhes pertencia e que é agora o santuário de memórias dos tempos em que acreditávamos que eles nos pertenciam vinte e quatro horas por dia, todos os dias do ano. A arte de passar pela vida sem que esta nos aplaque ou envelheça também é aprender a domar o país das recordações: lembrar um bocadinho é delicioso, lembrar muito é pernicioso, viver nas memórias é perigoso. No caso de Sísifo, podia carregar a pedra ou fazê-la rolar. O problema é que quando optamos por chutar para a frente as nossas minudências, a rota da pedra deixa de estar nas nossas mãos, ganhando velocidade e peso. E de novo a lei da gravidade regressa, implacável, aplicada às recordações.

O mito grego foi recuperado pelo filósofo e escritor Albert Camus para denunciar o triste fado da condição humana: a obrigação de uma rotina diária, determinada pelo sistema capitalista de produção, impedindo o homem de fazer as suas escolhas. Não sou tão fatalista, acredito que carregar algumas pedras faz parte da vida. A cada um cabe o seu destino, antes que a montanha nos caia em cima e se ria de nós, até ao dia em que conquistamos o topo, onde deixamos a pedra, qual bandeira espetada em solo lunar, e iniciamos a descida até ao lago da paz que se chama liberdade interior.