A narrativa de Zelensky

Mestre na arte de comunicar, Zelensky tem conseguido um apoio quase consensual para a causa ucraniana na guerra com a Rússia. Quais os perigos da aceitação acrítica de uma narrativa de guerra? E como o presidente ucraniano conseguiu ganhar a Europa? Especialistas em Comunicação e Ciência Política explicam o que está em causa.

Ponto prévio. A análise do conflito entre a Ucrânia e a Rússia pressupõe, em primeira instância, a compreensão do quadro de valores ideológicos e socioculturais que regem o mundo ocidental e que, logo à partida, é mais favorável ao povo ucraniano, vitimizado, oprimido pela Rússia. É neste contexto que é preciso atribuir significado às ilações que o Ocidente tem vindo a retirar das atuações quer de Volodymyr Zelensky, quer de Vladimir Putin. O quadro político quase não permite hesitações quanto à identificação de quem é o agressor. Mas há outros aspetos a ter em conta para perceber o peso da comunicação neste conflito.

A identificação com o presidente ucraniano é um fenómeno quase instantâneo. O carisma, a postura, o sentido de humor, a narrativa emotiva, tudo concorre para uma rápida adesão a uma causa, a da Ucrânia. E, por oposição, ao repúdio da posição da Rússia. No entanto, segundo André Barata, professor de Filosofia Política da Universidade da Beira Interior, “pode ser perigoso deixar que ‘o trigo e o joio’ se misturem nesta equação”. Até porque falar de heróis e vilões pressupõe a existência de apenas dois caminhos, completamente distintos – o bem e o mal -, e “na maioria das vezes é errado proceder a este tipo de leituras”.

A verdade é que o mundo ocidental faz uma avaliação quase consensual dos papéis dos dois lados em conflito: a Ucrânia é a “vítima” e a Rússia é o “vilão”. Para António Marques Mendes, diretor da “Wisdom Consulting” e professor convidado do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, é “inevitável que se usem os valores que marcam o nosso espaço civilizacional para avaliar pessoas e contextos”. Por esse motivo, simpatizamos à partida com a Ucrânia, por considerarmos que a Rússia invadiu, agrediu e violou os direitos da Ucrânia.

Por outro lado, a própria localização geoestratégica das grandes democracias ocidentais, pertencentes à União Europeia (UE), torna-as muito mais sensíveis à ameaça do imperialismo russo, e a “grande identificação cultural, religiosa e até política” com a Ucrânia facilita a adesão à posição de Zelensky, sustenta António Costa Pinto, politólogo e professor do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

Vladimir Putin tem uma postura distante, racionaliza e ordena – e isso também faz parte da sua estratégia de comunicação
(Foto: Ramil Sitdikov/SPUTNIK/AFP)

A mediatização sem precedentes de uma guerra em cenário europeu trouxe a defesa para o centro das preocupações das populações, tornando-as muito mais recetivas ao aumento das verbas adjudicadas para o setor – a meta da NATO é a dedicação de 2% do Produto Interno Bruto (PIB). Além de que a onda de apoio a Zelensky facilita o processo de adesão da Ucrânia à UE. José Palmeira, professor de Relações Internacionais da Universidade do Minho, levanta, porém, algumas reservas à viabilidade deste passo para os 27 e questiona se “estará Portugal disposto a deixar de investir, por exemplo, na saúde para passar a investir mais na defesa”.

Quanto vale uma boa narrativa?

A eficácia da estratégia comunicacional de Zelensky é outro dos fatores que ajudam a explicar a aceitação de uma visão praticamente unilateral. Num Mundo mediatizado, a eficácia dos discursos políticos para impactar a opinião pública é crucial. E também aqui, no campo da comunicação, Rússia e Ucrânia posicionam-se em lados opostos. Sem grandes recursos bélicos, Zelensky – com uma carreira de sucesso como ator e guionista – teve de repensar a sua estratégia para dissuadir a oposição: do discurso ao vestuário, tudo foi estudado para conquistar apoio internacional e com isso conseguir sobreviver a uma guerra que inicialmente foi dada como perdida.

Se do lado ucraniano vimos um líder quebrar os cânones tradicionais ao trocar o fato e gravata por uma t-shirt e casaco verdes casuais (mas estilo militar); do lado russo Putin manteve a postura formal, aparecendo maioritariamente em salões grandes e vazios. Posturas distintas que, segundo alguns especialistas, são capazes de produzir profundo impacto nas audiências.

A estrutura da comunicação de Zelensky tem sido consistente: um porta-voz, uma mensagem, uma visão, um objetivo
(Foto: Sergey Dolzhenko/EPA)

Susana Magalhães Martinho, jornalista e storyteller, explica que a coerência entre a comunicação verbal e não-verbal é apenas um dos motivos pelos quais Zelensky conseguiu rapidamente conquistar o seu povo. “O contacto visual é um exemplo, Zelensky olha as pessoas nos olhos, procura demonstrar proximidade, utiliza mensagens claras e de fácil acesso a toda a gente.” A postura assertiva, o sorriso, o tom de voz, o ritmo com que fala são outras das estratégias eficazmente utilizadas pelo antigo ator. Mas o segredo está, na opinião da formadora em Comunicação, no reforço das palavras com os gestos: “Levanta o braço, sempre que profere “Slava Ukraini” [Glória à Ucrânia] e isto por mais simples que pareça produz impactos”. Em contraste, Putin “conhece mal a sua audiência, porque não utiliza a escuta ativa, não demonstra emoções e projeta no povo russo uma extensão dos seus ideais e interesses”.

A preocupação de Zelensky com a comunicação na era digital é vista por grande parte do povo ocidental como uma vantagem e contribui decisivamente para o sucesso do político na cena internacional. “Conseguiu o impensável. O presidente ucraniano fez frente a Putin através do storytelling. Ele criou uma narrativa no digital que tocou no coração do Mundo”. Na verdade, o caminho trilhado na construção da credibilidade e respeito das outras potências mundiais traduziu-se em atos inéditos. “Lembremos as ajudas da UE a um país que não pertence aos 27 e a mobilização de civis não ucranianos para ajudar no combate à guerra.”

Susana Magalhães Martinho acredita que o presidente ucraniano será lembrado para sempre “como um dos maiores símbolos de resiliência e resistência democrática”, mas sublinha que este feito só é conseguido devido ao seu passado profissional. “Se repararmos nos discursos em cada Parlamento, Zelensky conta uma história, um feito, uma passagem, um momento que marcou uma nação com o claro intuito de ganhar a confiança, apoio e admiração de várias potências, tentando deixar marcas profundas na memória coletiva de todos nós.”

(Foto: Genya Savilov/AFP)

Para António Marques Mendes, “Zelensky conseguiu perceber a forma como a situação ia ser entendida pelos ocidentais e usa isso a seu favor”. O especialista em comunicação de crise salienta que existe um alinhamento claro entre a estratégia escolhida e aquilo que os países ocidentais estavam à espera de ver e ouvir. Por esse motivo, “a narrativa é facilmente aceite e disseminada nos media sociais”. No fundo, o presidente ucraniano “definiu um quadro de valores e apontou uma visão de futuro”. Mais uma vez, a dicotomia. “Zelensky interage, emociona e conquista. Putin emite, racionaliza e ordena.” E nada está errado porque, considera, “estas são estratégias de propaganda” pensadas e trabalhadas para impactar audiências.

A Rússia não está assim tão isolada

E por muito tentadora que seja a tendência para aceitar incondicionalmente um dos lados, convém não esquecer que os dirigentes políticos dos países que se solidarizaram com a Ucrânia também tiram dividendos ao alinhar com a opinião pública dominante. Não é certamente por acaso que mesmo partidos da extrema-direita sejam favoráveis à integração de refugiados ucranianos. No entanto, nem todos os países estão do lado da Ucrânia. José Palmeira destaca o caso das sanções: “É verdade que o número de países não é muito significativo, porém estamos a falar dos maiores países do Mundo: China, Índia, África do Sul e Brasil”. Juntos, representam “42% da população mundial, um quarto do PIB mundial e um quinto do comércio internacional”. Ou seja, a Rússia não está totalmente isolada.

A postura destas potências radica na natureza de cada regime. “No caso da China, estamos a falar de uma conduta totalitária, a África do Sul tem partidos com ideologias próximas de Putin, já o Brasil e a Índia mantêm relações económicas muito próximas com a Rússia, que levam a uma defesa dos interesses nacionais”, especifica José Palmeira. Há ainda casos paradigmáticos, como a Turquia (membro da NATO) e Israel (pró-ocidental), que condenam a invasão, mas não aplicam sanções.

Mónica Dias, professora do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica, fala de uma mudança de era em termos de política externa. Se, durante os anos pautados pelo estigma da Segunda Guerra Mundial, a Alemanha se sentia impedida de “enviar armamento a qualquer conflito bélico”, neste momento tudo é diferente. “Os Verdes apoiaram o envio de armamento para a Ucrânia” e há vontade de cumprir o compromisso com os 2% do PIB no setor da Defesa, uma meta exigida há muito pela NATO.

(Foto: Sergey Dolzhenko/EPA)

Esta mudança justifica-se porque “a Alemanha percebeu que a liberdade da Ucrânia é a liberdade da Europa”. E isto acontece porque muitos conhecem a visão geopolítica de Putin, “que é anterior ao princípio da autodeterminação dos povos”. E se é verdade que o líder russo “ressuscitou e deu uma nova energia à NATO”, também “afastou de forma definitiva vários países de relações económicas e comerciais mais estreitas”. Mais, “com tudo isto ainda conseguiu fortalecer o sentimento nacionalista na Ucrânia”.

Se no plano militar e diplomático o conflito parece estar num impasse, quem ganha na guerra paralela da comunicação? Para António Marques Mendes, “numa guerra nunca há vencedores, há sempre perdas”. E do ponto de vista da eficácia comunicacional também, já que nenhuma das partes conseguiu atingir os objetivos finais. Ainda assim, “Zelensky tem conseguido atingir objetivos intermédios importantes”. E a Ucrânia mantém a sua independência.