Valter Hugo Mãe

A Marie da Estela


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

A Marie, hoje, parece-me o Picasso. Se isso durará muito e a levará a uma vida longa de maravilha? Não sei.

Há uma miúda no “Big Brother” com umas alfaces penduradas nas orelhas e julgo ser tão necessária às novas gerações quanto pão para a boca. Eu não sei se ela se aguenta até ao fim dentro daquele jogo de triturar gente, mas parece-me fundamental a exposição da sua figura terna e pacificamente irreverente diante de uma multidão de jovens tragicamente padronizados e contidos perante o avanço de uma cultura de crítica cruel e pulsão para o cancelamento.

Insisto muito na ideia de que nenhuma geração está condenada à desgraça, ainda que as circunstâncias possam definir vocações para tempos mais tristes ou severos. Considero, de todo o modo, que há incondicionalmente uma saída à disposição de todos os cárceres para a colectiva mente humana. E acredito que algumas figuras inspirarão sempre a mudança e a redefinição da nova liberdade e a conquista da esperança.

Os jovens de 2022 são padronizados devido ao exercício sentencioso das redes sociais, onde a punição imediata vem de um discurso furioso e sem preparo tanto quantos e cria também o silenciamento de muitos, que preferem não se pronunciar ou apenas replicar o discurso dominante, o comportamento já ratificado pela vasta maioria.

Não é por acaso que o TikTok se transforma na rede mais bem-sucedida, por ser precisamente aquela que promove a imitação, transformando toda a gente na mesma pessoa, da China ao Brasil, de Moçambique à Noruega, o mesmo gesto, o mesmo som, a mesma anedota contada até à náusea, num apagamento da imaginação própria, da autoria, de um resto de originalidade.

Não prevejo que as miúdas todas do país se convençam a sair com brincos de alface à rua, ou que deixem de se depilar, mas não é pela imitação da Marie que importa seguir, é pela resposta ensimesmada, pela coragem de ser de outro modo, por definir para si mesma o que é a beleza e o que é o uso do seu corpo. Sem que sucumba ao império da anulação para não ser apontada, para não ser criticada.

Um comentador dizia na televisão que esta miúda devia moderar as suas vestes porque não conseguiria emprego nenhum num país como Portugal. Que tontice não entender que esta miúda é dona do seu próprio espectáculo e que, à sua maneira, é uma artista, uma estrela, e que tem vinte anos de idade e um sonho inteiro ao alcance dos olhos. Pedir-lhe que pense num emprego convencional neste instante é como pedir ao Picasso que não pinte os olhos nas testas das pessoas porque ninguém lhe vai comprar a Guernica nem dar trabalho no MacDonald’s.

A Marie, hoje, parece-me o Picasso. Se isso durará muito e a levará a uma vida longa de maravilha? Não sei. Mas sei que o que ela representa, assim só por vestir e sorrir, é absolutamente fundamental para ensinar aos mais jovens que os caminhos do sonho podem ser de muitas maneiras e que os grandes empregos também somos nós que os inventamos. Não haveremos todos de virar gente recatada com medo de tudo. Nem que para isso tenham os outros de ter medo de nós.

A Estela fica aqui tão perto. Íamos à feira de domingo. Comprávamos as hortaliças. Todos os Natais ali vou ver se consigo pinhões verdadeiros. Que bom que daqueles campos se tenha inventado uma miúda que, nisto que aponto, faz guerra à castradora opressão que se instalou.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)