Margarida Rebelo Pinto

A maldade existe


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

Fábio foi chamado para uma guerra que não pediu numa noite de folga. Na Ucrânia, milhões de homens e de mulheres lutam num conflito imposto por um ditador.

Quando começa uma guerra?

Fábio foi sair com três amigos, colegas de trabalho, aquela noite era para ser igual a tantas outras. Mas Fábio era polícia e está consagrado na lei que um agente da autoridade, mesmo fora de serviço, tem o dever de agir perante a prática de um crime. Depois de ter tentado separar dois gangues rivais, acabou no chão a ser pontapeado na cabeça. Não quis ver as imagens, o Fábio tem a mesma idade do meu filho e de tantos filhos de quem está a ler-me. Basta-me a vil cobardia e a brutalidade de quem lhe infligiu os golpes mortais. Não quis ver as imagens porque a guerra tomou conta de todos os ecrãs a todas as horas do dia e da noite e, à data em que escrevo, não há sinais que indiquem o seu término.

Em tempos de paz, encaramos a maldade como uma exceção, um desvio de comportamento. Em tempos de guerra, a maldade passa a ser personificada por um dos lados do conflito: o lado invasor, aquele que provoca o terror, o caos e a morte. Gregos que cercam os troianos, Roma contra Cartago, a Alemanha contra todos e, agora, a Rússia contra o Mundo. As guerras são germinadas em tempos de paz, muitas vezes sob o olhar complacente dos povos distantes que acreditam que a promessa do progresso económico é a receita mágica para que um governante escolha o lucro em vez do conflito, apesar de a História provar que as convicções de um governante estão quase sempre acima de tudo, incluindo da realidade em que vive, por ter dentro de si a vontade e o poder de criar outra realidade. Quando o genial Chaplin apresentou “O grande ditador” em 1940, mostrando o personagem Hynkel brincando com o globo terrestre como se fosse um joguete que equilibra precariamente, estava longe de imaginar o extermínio dos judeus no fim da guerra. O discurso final do ditador apela ao bom senso entre os homens mas, como dizem os espanhóis, “el sentido común es el menos común de los sentidos”.

Fábio foi chamado para uma guerra que não pediu numa noite de folga. Na Ucrânia, milhões de homens e de mulheres lutam num conflito imposto por um ditador a quem o Ocidente apelida com complacência de autocrático, cujo sonho é recuperar os territórios que pertenceram à União Soviética nos seus tempos de glória e mostrar ao Ocidente que o urso russo tem garras, mandíbulas e uma força descomunal. Putin não cresceu a ver os filmes de Chaplin, pelo que não será sensível ao discurso final que apela ao entendimento entre os homens e à democracia. O ódio entre os homens passará, os ditadores sucumbirão e o poder que arrebataram ao povo voltará para o povo. E enquanto homens morrerem, a liberdade não perecerá. Vale a pena ouvi-lo, mostrá-lo aos nossos filhos, explicar-lhes que a maldade não é uma exceção nem um desvio, a maldade existe. Se nasce com o indivíduo ou é adquirida por via da aculturação, isso é outro tema que não cabe nas últimas linhas desta crónica. As imagens de destruição colossal e maciça das cidades ucranianas e a morte de Fábio numa rua de Lisboa obedecem aos mesmos princípios de desumanidade e de violência.

Infelizmente, citando Saramago, é mais fácil mobilizar homens para a guerra do que para a paz.