A importância dos primeiros mil dias do desenvolvimento das crianças

Inês Henriques e o marido deixaram Lisboa e fixaram-se em Alcochete para concretizar o projeto familiar e têm o António e o Manuel (Foto: Carlos Pimentel/Global Imagens)

O desenvolvimento neurológico depende do funcionamento do sistema nervoso central, que é definido por um conjunto de órgãos, entre os quais o cérebro. No início da vida, o crescimento cerebral é exponencial, cabendo aos pais aproveitar este período para estimularem os seus filhos. Duas famílias, atentas a esta questão, contam como participam neste processo.

Definir rotinas e estabelecer regras é, para Ana e António Cid , uma “chave mestra” para “apoiar e dar segurança” aos cinco filhos: Caetano, dez anos, Manuel, nove, Luísa, seis, Carlota, dois, e António, um. Estes pais, ambos lisboetas de 38 anos, priorizam “o brincar e o estar”, dando “espaço para a criatividade e liberdade de serem eles próprios e potenciarem as capacidades”.

Acreditam que assim proporcionam o bom desenvolvimento cognitivo dos petizes. Mas não só. “A criança vai ter limitações na aprendizagem se não sentir segurança nem tiver criado um vínculo sólido. Consideramos que deve haver estabilidade emocional, primeiro dos pais, depois dos filhos”, sublinha Ana, médica de cuidados paliativos.

Os resultados são construídos diariamente. A par das regras e das rotinas existem momentos de descompressão, salienta António, advogado de profissão. “As atividades organizadas em conjunto no fim de semana são ótimas, mas o que é feito todos os dias, num ano inteiro, é que faz a diferença”, destaca. Durante a semana, os filhos “brincam, conversam, leem, organizam as próprias sessões de teatro e não veem televisão”.

Ana explica que para construir uma relação saudável é preciso ter tempo para as crianças, aprender a conhecê-las: “A Luísa oferece desenhos e dou valor a esse ato, já a Carlota gosta de ouvir histórias”. “Para ter tempo é preciso ceder”, diz. Foi o que fez, abdicando da evolução na carreira profissional, ao solicitar a redução do horário laboral para poder ir buscar os cinco filhos à tarde.

Quando Inês Henriques, natural de Santiago do Cacém, 37 anos, e Ricardo Gomes, 35 e nascido no Fundão, decidiram ser pais, largaram a vida citadina, em Lisboa, onde se conheceram e estabeleceram profissionalmente. Ela como professora do 1.º Ciclo e doula na área do parto e ele na área do exercício físico. Há quatro anos, já em Alcochete, foram pais de primeira viagem, de António, e de segunda, há 16 meses, de Manuel.

Para este casal, os três primeiros anos de vida de uma criança são fundamentais, não só por causa do que ela já é capaz de fazer mas também nesse período pode ser construída “uma forte estrutura emocional”. Inês exemplifica que o filho mais velho, desde muito cedo, começou a preparar o próprio pequeno-almoço. “As pequenas tarefas servem de base para atividades mais orientadas e que mais tarde vão conferir autonomia e tranquilidade na liberdade de ouvir ou estar disponível.”

Segundo Filipe Palavra, neurologista pediátrico do Hospital Pediátrico de Coimbra, “por vezes, fala-se dos primeiros mil dias de vida, contando-os a partir do momento da conceção, como críticos para o que virá a ser a criança na idade adulta e enquanto pessoa”. Ana Teresa Brito, doutorada em estudos da criança, docente na área da educação de infância e investigadora no Centro de Investigação em Educação do ISPA – Instituto Universitário (Lisboa), corrobora que “o momento da conceção marca a história da família e da pessoa que se vai constituindo”.

Ana e António Cid valorizam as rotinas diárias com os cinco filhos: Caetano, Manuel, Luísa, Carlota e António
(Foto: Diana Quintela/Global Imagens)

Essa construção ao nível cerebral é exponencial até um determinado momento. “O crescimento faz parte da nossa biologia e o salto quantitativo e qualitativo mais importante acontece nos primeiros anos de vida”, afirma Filipe Palavra. O desenvolvimento neurológico é “absolutamente fulcral para a estrutura biológica e depende do funcionamento do sistema nervoso central (SNC), definido por um conjunto de órgãos, sendo o cérebro o mais conhecido”. É com base nas “conexões entre as células” que se aprende a andar ou a falar, por exemplo.

Classificando o desenvolvimento do SNC como “extraordinário, incrível e fascinante”, o especialista refere que o tubo neural do feto é encerrado aos 28 dias de gestação e “duas células dão origem a cem mil milhões de neurónios”. Outras características do SNC são a plasticidade cerebral, que “permite reabilitar ou corrigir se ocorrer uma lesão”, e o processo de mielinização, que “facilita a velocidade de condução do impulso nervoso e otimiza funções como a aprendizagem”.

Amor e estímulos essenciais ao desenvolvimento cognitivo

Os primeiros mil dias de vida são uma “janela de oportunidade” tanto para o bem como para o mal, sustenta o neurologista pediátrico. “A carruagem só passa uma vez. Convém dar todos os passos no sentido de garantir que a estrutura se mantém e a função se aprimora.” Os estímulos, o amor e o carinho são cruciais no processo de crescimento cerebral e de desenvolvimento cognitivo.

Para Ana Teresa Brito, “é a relação, próxima e estabelecida nos primeiros anos de vida, que dá segurança por se ser amado”. Esta evidência tem “base científica robusta”, de que é exemplo um estudo do Center on the Developing Child, da Universidade Harvard (EUA), que conclui que “relacionamentos atenciosos, adultos carinhosos e experiências positivas no início de vida constroem uma forte arquitetura cerebral para as crianças”. Pelo contrário, os maus-tratos, os problemas de saúde mental e a pobreza podem ter impacto negativo no desenvolvimento, embora seja “sempre possível construir oportunidades para as crianças e resgatar o que de negativo ocorreu”.

A campanha internacional “Primeiros anos, a nossa prioridade”, liderada em Portugal pela Fundação Nossa Senhora do Bom Sucesso (FNSBS), visa “promover oportunidades iguais para todas as crianças dos zero aos seis anos, em especial nos primeiros mil dias de vida, bem como tentar assegurar que as famílias tenham condições para lhes proporcionar um vínculo seguro, um ambiente saudável, estimulante e protetor”, nota Paula Nanita, administradora executiva da FNSBS. Uma das políticas defendidas pela iniciativa é alterar a forma como se olha para as creches. “Não são considerados ambientes que possibilitam a estimulação e orientação educativa, mas sim locais onde se deixam os filhos.”

Para Inês Henriques, “a forma de mudar a fralda ou de alimentar” dita a diferença, porque “os cuidados são fundamentais para o desenvolvimento emocional e cerebral”. “Não é preciso encher os bebés de atividades. É preciso dar-lhes espaço para explorarem, procurarem, serem. ” Como valoriza o brincar na Natureza, optou por matricular o António no Cire Alcochete, que tem um projeto educativo baseado na metodologia Reggio Emília para crianças a partir dos três anos. Para já, o Manuel ainda frequenta um jardim de infância mais tradicional. Esta mãe, que recorda brincar na rua na infância, é da opinião que é “preciso voltar às raízes”, uma prática que segue com filhos no dia a dia e, garante, tem “resultados positivos”.

Também Ana Cid é apologista de “voltar ao essencial” com programas simples, como “passeios pelo bairro, piqueniques, brincadeiras em parques ou visitas a exposições”. Acima de tudo, “fazer com que a criança se sinta amada”, o que “implica trabalho, esforço e cedências”.