Valter Hugo Mãe

A estreia dos amigos


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

O que o Rui Couceiro consegue é muito raro. Os primeiros livros tendem a ser baralhados, pouco precisos, com pistas para o estilo do autor mas ainda algo opacos, à deriva. Neste caso, por outro lado, há uma graça na gestão do discurso que vai do estilo à inteligência.

É um susto que os amigos próximos desatem a escrever livros, ainda que seja minha convicção a de que todas as pessoas deviam procurar fazê-lo, ao menos por uma vez, mal ou bem, exercendo na plenitude sua autenticidade e imaginação. Quando os amigos começam a escrever, contudo, colocam na relação essa coisa delicada do gosto, a subjectiva e muito cruel possibilidade de não coincidirmos e nos perigarmos pelos egos. Os meus amigos, por tantos anos que escrevo e publico, são muito quem se quis aproximar e me suporta os textos. Quero dizer, quem gosta de me ler acaba por se motivar a ficar mais perto, a entender e aceitar quem sou.

Assim, o Rui Couceiro, com quem trabalhei por uns anos e que rumou a dirigir outra chancela e outros escritores. Já deixei claro que a grande dificuldade em ser seu amigo tem estado no fanico das mulheres por ele. Fico pior do que invisível ao seu lado, absolutamente feio, deitado fora. Agora, depois de algumas crónicas brilhantes, foi com um susto que soube do seu primeiro romance, “Baiôa sem data para morrer”. O melindre estaria em saber que possibilidade haveria de corresponder, manter o equilíbrio da admiração que nos temos. Quis ler urgentemente. Quando não há remédio, vale mais que seja frontal e que sigamos pelo império da esperança.

Cerca de 450 páginas de uma estreia impressionante, onde o cronista vira um inteligentíssimo contador de histórias, cheio de detalhes e surpresas, num claro deleite de narrar sem pressas ou precipitações, apenas a maturação de um relato franco, humorizado, de como testemunhou a morte de todos os habitantes de uma pequena aldeia alentejana. O que o Rui Couceiro consegue é muito raro. Os primeiros livros tendem a ser baralhados, pouco precisos, com pistas para o estilo do autor mas ainda algo opacos, à deriva. Neste caso, por outro lado, há uma graça na gestão do discurso que vai do estilo à inteligência. Sem jamais sucumbir ao sarcasmo, o narrador que viaja de Lisboa assiste ao assombro da aldeia como alguém que, atento mas sem contar, se envolve e enternece. A todo o tempo, lúcido, nos mostra como a simples necessidade de respeitar as pessoas pode inventar um jeito de as amar.

É logo na abertura do livro que o narrador, um pouco à luz de Garrett, declara: “O que pode o leitor tomar como certo é que os vi morrer a todos”. Sim, existe algo de viagem na terra do jovem professor que vai a Gorda-e-Feia ver que há da casa da sua família materna. Descritas paisagens, o narrador acabará por descrever os costumes e traçar um retrato potente da desertificação do interior e de como a perda da memória das gentes é a perda de uma sabedoria a que jamais se chegará por outra via.

“Baiôa sem data para morrer” não é uma estreia comum. Este livro já não solicita condescendência alguma. É fulgurante, viciante, comovente, inesperado. Um modo de assistirmos aos velhos. Sabermos dos velhos. De os amarmos. Que é o mesmo que dizer de sermos gente, termos grandeza humana. Que maravilha. Não perco um amigo, ganhamos todos um belíssimo romancista.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)