Valter Hugo Mãe

A dona Hilda fez cem anos


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

As pessoas que agradecem e se desculpam merecem sempre respeito. As pessoas que fazem cem anos devem ser escutadas. O que dizem tem a importância de uma conquista sem preço.

Para um português uma festa brasileira pode parecer algo coisa que começa logo no fim. Quero dizer, a dona Hilda fez cem anos de idade e, depois de uma missa, entrámos todos na sala para jantar e já começou a banda a tocar e toda a gente se pôs a trocar cadeiras, circulando de mesa em mesa como se a atribuição de um lugar específico fosse uma retórica sem demasiado préstimo. A alegria brasileira não está para demoras. Quando acabou a missa, já ninguém queria formalidades nem complicações, a família acelerou abraços e danças, cantorias e risos sem-fim. O que mais me impressionou? Que a dona Hilda estivesse mais arregalada e fizesse maior alarde do que os outros. Ali se divertiu com cem anos de gratidão aos Céus pelo milagre de existir. Quando discursou, comoveu-me que dissesse: só lamento não ter sabido servir melhor o Senhor.

As pessoas que agradecem e se desculpam merecem sempre respeito. As pessoas que fazem cem anos devem ser escutadas. O que dizem tem a importância de uma conquista sem preço. Nós não saberemos o que observar no Mundo a partir de uma altura tão elevada, e eu estou convencido de que apenas sobrevive assim quem tem motivos. Não é por fazer dietas ou respirar apenas o ar limpo das montanhas, julgo que se sobrevive assim por ser preciso.

Todas as pessoas mais velhas que conheço me parecem seguras pela ideia de valerem a alguém. Cuidam de alguém. Um filho, normalmente. Também não pode haver maior dignidade do que a de quem salva a vida de outrem nos gestos comuns de cada dia. Por vezes, essa salvação é feita apenas pela intensidade do olhar, pelo carinho de uma palavra que ainda contém toda a paciência do Mundo.

A dona Hilda esteve ao centro de sua festa numa felicidade palpável. E a família era de todas as maneiras um gesto de afago para ela. Algumas pessoas são pura benignidade. A vida leva-as a essa dimensão apenas grata de que falava acima. E essa gratidão é toda a inspiração de que necessitamos. Se nos pudessem reeducar no sentido maior da felicidade estou convencido de que a primeira lição teria como plano a aprendizagem do agradecimento. Foi o que mais vi na dona Hilda, sua gratidão.

Lá se mudou de cadeira e de mesa, toda a gente dançou um pouco, conversou, mediu sua idade também. Enquanto a banda tocava imparável, quando até Guns N’ Roses se ouviu, tive a impressão de que a vida toda se resume num instante em que sejamos capazes de garantir à nossa gente que o amor é genuíno. É fundamental termos a sorte de criar esse instante. Quando não houver mais nada, essa será a prova de nossa humanidade. De nossa sagrada humanidade. A dona Hilda fez isso. Sentimos isso naquele lugar bonito do Rio de Janeiro.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)