Valter Hugo Mãe

A correr para o Natal


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

A pressa para o Natal tem esta responsabilidade infinita. Falharemos sempre, julgo. Só as crianças terão capacidade para atravessarem a época convictas de que tudo foi bastante, sem dilema maior do que aquele de se porem felizes e mais nada.

Uma vizinha diz-me que este tempo já não serve para nada senão preparar o Natal, como se isto já fosse tudo para cuidar do bacalhau e ver cada presente e sanar amuos da família para que, ao menos durante o tempo de um jantar por ano, toda a gente esteja bem, sem fúria nem grito.

Já estão os chocolates nas lojas, já se podem comprar as pinhas nas pratas brilhantes e enfeitar o pinheiro. A mim, o frio ainda me convenceu pouco. Parece-me que o verão acabou há uns dias de nada e que tenho tanto para fazer que não posso já andar atrás de presentes e decorações sazonais. Mais ainda, quero mesmo é que o tempo passe devagar. Estou a ver tudo à pressa, as pessoas a desaparecerem e a folia sem parar. Que raio de destino me ocorre, tão sem sentido e muito sem pensar.

A minha vizinha diz-me que vai oferecer gatos aos irmãos. Gatos de verdade, vivos. São bichos de quase nenhum cansaço, fazem as suas vidas com uma ciência erudita, usam um afecto cheio de códigos, entendem-se ao fim de uns tempos, como um poema mais hermético que se vai entregando. Vai oferecer gatos e não se importa com os protestos. É preciso ajudar os bichos que estão a ser abandonados pelos insensíveis e é preciso mostrar a tantos insensíveis que um animal nos humaniza. Eu temo pelos gatos que se oferecem meio à revelia. Serão eventualmente os primeiros ao abandono pelas ruas. Mas concordo muito que só há maravilha em acolher um animal.

Gostei sempre do Natal, mas há décadas que parece não dar exactamente certo. De todo o modo, gosto sinceramente de imaginar que vai ser bom. Que basta uma qualquer coisa. Que vamos estar bem nessa gratidão de ainda perdurarmos. Fui fazer perguntas para casa e entendi que já todos fazem suas matemáticas para a festa. Uma tia minha costumava explicar que o Natal e a Páscoa eram tempos solenes de respeito a Deus e que, por isso, desde tomar banho e vestir limpo, até iluminar a mesa e alegrar os outros, tudo era para Deus. Através das pessoas adoçamos a boca de Deus, através das pessoas descansamos o corpo de Deus.

A pressa para o Natal tem esta responsabilidade infinita. Falharemos sempre, julgo. Só as crianças terão capacidade para atravessarem a época convictas de que tudo foi bastante, sem dilema maior do que aquele de se porem felizes e mais nada. Para os adultos, existe alguma coisa de julgamento, de balanço que verifica os haveres e os deves. Não sei se é possível que alguma vez resulte num equilíbrio perfeito. Seria como saber pintar um Caravaggio sem angústia. Isso não se faz. Nem um génio se conquista sem a iminência da desgraça, nem as famílias se mantêm unidas sem a constante promessa de partir. O Natal é uma pergunta feita a tudo isso. Começa a ser feita no dia em que a nossa lojinha do bairro põe à venda aqueles chocolates. Não sabemos se os comprar para comer ou para os pendurar e esperar que milagrem sobre nossas vidas.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)