Valter Hugo Mãe

A comoção das pedras


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

As anonas amadurecem de súbito. São pedras que amolecem num instante qualquer, sem outra razão senão a de desistirem da condição severa da pedra. Adoçam. Subitamente, são a mais delicada fruta.

Sonhei que estava casado com uma mulher que cuidava dos nossos filhos enquanto eu cozinhava algo complicado nas labaredas de um fogão. Não me era estranho estar casado e com filhos, era-me quase insuportável que ainda usasse um fogão a gás e eu tentava entender que raio havia acontecido à placa eléctrica que tinha quase a certeza de haver comprado.

Os filhos, que talvez fossem muitos, porque iam e vinham e eram sempre outros, perguntavam o que seria o jantar, e eu julgo que dizia tantas coisas diferentes que cada colherada haveria de servir-se ao gosto do freguês. Era uma panela mágica, uma que imaginava receitas infinitas para a gula de cada um e inventava tudo no instante de abeirar o prato.

Depois, estava sol intenso e comentávamos que era tão bom o Verão com seus dias longuíssimos, festas grandes que teimavam em não acabar. Havia uma janela maior, bem maior do que até a porta da nossa cozinha, e os vizinhos eram muito à distância e tinham crescido árvores de fruto que ainda amadureciam, prometiam pêras e anonas. Eu estava à espera das anonas. Um dos filhos perguntava: pai, é verdade que são como pedras que se comovem de um segundo para o outro.

As anonas amadurecem de súbito. São pedras que amolecem num instante qualquer, sem outra razão senão a de desistirem da condição severa da pedra. Adoçam. Subitamente, são a mais delicada fruta. Eu respondi: é. Comovem-se.

A nossa casa é às cores e a minha mulher mudava de vestido a cada parede. No fundo turquesa da cozinha, ela usava vermelho. No fundo salmão da sala, ela usava azul-escuro. Nas portas cor-de-rosa ela estava sempre de amarelo. Eu reparava sobretudo no jeito como buscava o meu olhar, para garantir que nos amávamos sem limite. E eu vigiava o fogo e reparava em como era bela e sabia manter os filhos calmos, como se cultos na infância, felizes mas pacientes e colaboradores. Ela perguntou: o que bebemos? E eu disse: abrimos um Barca Velha. Celebremos esta abundância. A família abundante, o verão abundante, e todos quantos desistem de ser uma pedra.

A primeira colher foi para os gatos. Eu pedi: leva este prato aos bichos lá fora, que eles não cozinham, só enfeitam os muros e os campos. Depois, a um segundo filho, eu pedi: leva este prato aos vizinhos, que eles estavam a cheirar das varandas a aguar entusiasmados. A um terceiro filho, eu disse: leva este prato a S. Bento, que ele vai dar-nos um milagre, porque tudo por aqui já é um milagre, não vês? Perguntei. Eu perguntei: não vês? Ele respondeu: vou, sim, pai. Vejo bem. Fiquei feliz. Busquei um quarto prato e pedi a um quarto filho: leva para a nossa mesa, vai chegar para todos. Sobre a porcelana limpa pousou um livro. Da colher desceu um livro. Eu sorri. Escrevera aquele livro lenta e delicadamente. Sanaria nossa fome. Estaríamos sempre bem. Vi a mesa assim posta e os filhos sentavam aos pares e eram tantos que a minha mulher também feliz chamava: apaga o fogo. Anda. Fizeste tudo o que tinhas a fazer. Comovi.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)