Valter Hugo Mãe

A canção


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Escolher apenas uma só composição e uma só voz é, de verdade, como casar. Sabemos que veremos todas as outras mulheres na rua, mas fizemos um voto de fé de amar uma acima de todas as outras.

Um jovem, há dias, perguntou-me sem assombro qual seria a minha canção favorita. Lembro bem de como somos de paixões sem limites e eternas aos 16 anos de idade e lembro bem de como elencamos tudo. Ainda hoje adoro listas e entendo a tentação de usar uma canção como alter ego, como um livro ou um quadro que nos definam profundamente e para sempre. A todo o passo somos seduzidos pela ideia de que aquela determinada obra, e nenhuma outra, é a que queremos a tocar no nosso funeral e na nossa ressurreição. Haveremos de estar magníficos, como felizes, se alguém tocar Monteverdi ou Cocteau Twins. Conforme a idade, a dor, o sonho, o dia.

Expliquei-lhe que ouço quase só música clássica, porque julguei que talvez lhe desse ideia de eu preferir tanta coisa não cantada, tanta Partita de Bach onde basta o violino. Mas ele insistia sem parar. Dizia: é como casar. Se tivesses de casar não podias ser bígamo. Por mais que gostes das outras, tens de ficar apenas com uma. Respondi: a Cecilia Bartoli a cantar “Sposa son Disprezzata”, acompanhada apenas ao piano por György Fisher. O original de Geminiano Giacomelli num pastiche de Antonio Vivaldi.

Ando há anos com isto na cabeça. Não sei como pode respirar a Cecilia Bartoli desta forma e não sei como se pode ser de tão educado canto, ao mesmo tempo com toda a paixão latina, o temperamento, e a limpidez. É profundamente humana, jamais fria ou meramente técnica, e perfeita no risco, na honestidade, na proeza heróica. Eu amo a Cecilia Bartoli e quando o rapaz me fez a pergunta da primeira vez eu, afinal, soube imediatamente a resposta, porque me é inelutável. Não me permite resistência e se hesito é para não parecer desrespeitoso para com tanta outra voz e tanta outra composição.

Como explicaria que não quero que se escute Anna Pusar com o “Zdes’ Khorosho”, de Rachmaninoff, no meu funeral e na minha ressurreição? Com que vergonha haveria de preterir o Fisher-Dieskau a cantar “Cara Sposa”, a Sara Mingardo a fazer o “Cum Dederit”, o Jaroussky com “L’heure exquise”, a Jessye Norman com “Im Treibhaus”, a Montserrat Caballé a cantar “Un bel di”, a Callas com “Casta Diva”, ou o Alessandro Carmignani como ninfa lamentando-se no oitavo livro de madrigais?

Escolher apenas uma só composição e uma só voz é, de verdade, como casar. Sabemos que veremos todas as outras mulheres na rua, mas fizemos um voto de fé de amar uma acima de todas as outras. É, sim, do foro da loucura. E talvez só esteja à altura da coragem de um rapaz de 16 anos. Eu, naquela idade, teria escolhido Current 93, uma canção chamada “Earth covers earth”. Acreditava, à altura, que seria eternamente fiel e sem duvidar jamais de minha função no Mundo: amar alguém. Curioso. Se tivesse de responder ao rapaz com algo exterior ao universo da música erudita, a minha resposta aos 51 anos de idade seria a mesma. Com o “Song to the siren”, feita pela Elisabeth Frazer, claro está, o meu favorito da pop já era o mesmo em 1987. Envelhecer não muda tudo. Apenas ensina a entender porque amamos, como amamos.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)