A autoajuda ajuda?

Os livros de autoajuda focam-se frequentemente em autodeclarações positivas que pretendem melhorar o humor e autoestima

Nos tops de vendas de livros há um género que se destaca cada vez mais: a literatura de autoajuda. Livros que explicam como ter autoestima, como ser mais eficaz, como mudar hábitos, como gerir a ansiedade, como focar-se no agora, como aprender a dizer não. Mas estes livros podem realmente melhorar o bem-estar e ajudar no processo de mudança de quem os lê?

“A vida é difícil.” Esta é a primeira frase do clássico ‘O caminho menos percorrido’, do psiquiatra Scott Peck, um dos livros que o psicólogo Nuno Gonçalves considera que mais o impactou. O psicoterapeuta tem uma relação ambivalente com este tipo de literatura: se, por um lado, é um leitor ávido de livros de autoajuda há mais de 30 anos, por outro, vê cada vez mais “autores com agendas e interesses não muito claros, com autoconhecimento muito incipiente, uma certa simplificação dos processos de mudança, um marketing de autopromoção muito agressivo e estratégias comerciais para vender uma certa pseudo-espiritualidade”, que não lhe agradam.

É por isso que defende que devia existir alguma regulação desse mercado. Exemplifica que, assim como quem não é médico não escreve livros sobre como tratar uma doença, quem não estudou saúde mental não está habilitado para abordar questões emocionais e psicológicas. “Não é uma questão corporativista”, ressalva, mas uma questão que toca a saúde pública. “É importante garantir que se produza “informação para a sociedade acerca dos critérios que permitirão ao cidadão realizar escolhas mais válidas, e sobretudo mais consciente dos riscos e das possibilidades e alternativas que poderá ter ao seu dispor”. Por isso aconselha quem queira ler este tipo de obras a procurar referências junto de fontes credíveis, como os profissionais da área, que ajudem a separar o trigo do joio. O psicólogo, por exemplo, recomenda muitas vezes leituras aos seus pacientes, como suporte do trabalho que é feito em consulta.

“A leitura de livros de autoajuda integrada num plano psicoterapêutico faz todo o sentido”, concorda a psicóloga Laura Alho. “Por um lado, porque o profissional irá sugerir leituras em função das necessidades do cliente e, por outro, o trabalho de psicoeducação é feito com base nos objetivos terapêuticos, que são diferentes para cada pessoa”, explica.

A psicóloga reconhece benefícios no processo de leitura em si: a aquisição de conhecimento, o aumento do vocabulário e a estimulação intelectual. Mas defende que isso não significa que alguma aprendizagem esteja a ser realmente feita. “Eu posso ler um livro de química e achá-lo muito interessante, mas isso não significa que eu saiba como aplicar esses conteúdos no dia a dia e de uma forma estruturada”, compara. Isso significa que, se quem lê estes livros porque procura mudanças duradouras na sua vida, dificilmente o conseguirá sem acompanhamento profissional. “Fazer mudanças pessoais com base em livros de autoajuda é construir a casa pelo telhado. Ainda que nos livros haja uma série de passos que garantem resultados incríveis, a realidade é que a grande maioria das pessoas fica frustrada por não atingir esses resultados prometidos ou, quando os alcança, os seus efeitos são curtos no tempo”, resume.

Mude-se em três passos (ou talvez não)

Talvez um dos maiores engodos da literatura de autoajuda seja uma certa perspetiva de ‘do it yourself’ (DIY) ou ‘faça você mesmo’ psicológico. Da mesma forma que o movimento DIY fomenta a construção, modificação e reparação de produtos sem recurso a profissionais, a literatura de autoajuda encerra o conceito de ‘arranje-se a si próprio’ ou ‘resolva-se a si próprio’. Mas isto tem alguns problemas.

O primeiro é usarmos apenas a nossa mente para resolver os problemas da nossa mente. Temos pontos cegos, vieses, distorções e padrões que, por definição, nos impedem de percecionar muitas coisas sozinhos. “A minha experiência é que a maior parte das vezes, os ‘leitores’ precisam de um ‘tradutor’, leia-se um terapeuta”, considera o psicólogo Nuno Gonçalves. “O autoconhecimento não é uma competência em que o ser humano seja assim tão bom, por questões de autodefesa. Muitas vezes, não vemos aquilo que realmente é, vemos através daquilo que somos; e aquilo que somos filtra, altera e adultera a mensagem”, explicita.

Quer isso dizer que para ganhar perspetiva e pôr em causa as nossas narrativas não podemos estar sozinhos, precisamos de estar em relação com alguém. “Um espaço e uma relação segura, sem julgamentos e críticas, um lugar autêntico, onde alguém testemunha a nossa existência e nos espelha”, esclarece o psicólogo.

O segundo problema é que a leitura é um processo cognitivo e abstrato. Há o risco de ficar preso naquilo a que Nuno Gonçalves chama de um “gueto intelectual”: esperar que a compreensão de ideias e conceitos seja suficiente. “E por vezes até têm o efeito contrário, gerando sentimentos de culpa, por aumentar a consciência daquilo que não estamos a fazer”, refere. E esse é o terceiro problema, e talvez o mais grave: que a leitura piore a condição de quem já não está bem. “Infelizmente, não são raros os casos que me chegam à prática clínica em que as pessoas começam por partilhar a ideia de que algo está errado com elas, porque não conseguem atingir resultados com livros específicos ou com aplicações de meditação e/ou respiração”, revela Laura Alho. A psicóloga acredita que os perigos destes livros estão ancorados em três pressupostos: “Considerar que há um método universal que vai funcionar para todas as pessoas”; “ a promessa implícita (ou explícita) de que os leitores farão mudanças incríveis nas suas vidas se seguirem os passos ‘simples’ partilhados pelos autores”; e “a referenciação a técnicas científicas sem provar ao leitor que são realmente científicas”.

Tudo junto, isto pode impactar negativamente a autoestima e a autoeficácia da pessoa, que sente que está a falhar em alguma coisa por não obter os resultados desejados. “O problema deixa de residir nos livros e passa a ser internalizado”, especifica a psicóloga. Como o leitor que procurou ajuda “a dar por si a dizer frases como ‘não consigo fazer nada de jeito: nem em coisas simples sou capaz de ter resultados’”.

Como ser infeliz?

Os livros de autoajuda focam-se frequentemente em autodeclarações positivas que pretendem melhorar o humor e autoestima. O problema é que este tipo de autoafirmação só parece ser eficaz para quem já tem uma autoestima elevada.

Joanne Wood, professora e investigadora da Universidade de Waterloo, no Canadá, que estuda questões relacionadas com a autoestima e o amor-próprio fez a experiência. Em 2009, realizou um estudo no qual dividiu os participantes em dois grupos, um com níveis de autoestima elevados, outro com níveis baixos e colocou-os a repetir alguns dos ‘mantras’ positivos destes livros: “Eu sou uma pessoa linda”, “eu aceito-me completamente” ou “eu sou capaz de tudo”.

Percebeu que isto pode beneficiar aqueles que já têm o seu amor-próprio elevado, mas que o tiro sai pela culatra para as pessoas que mais precisam de o melhorar. “Suspeitamos que as pessoas com baixa autoestima pensam nas muitas maneiras pelas quais a afirmação é errada para elas. Por exemplo, em resposta à afirmação ‘eu aceito-me completamente’, eles podem ter pensamentos como ‘não, eu não aceito o meu corpo’ ou ‘eu não acho que seja suficientemente inteligente’”, detalha a investigadora. “Além destas afirmações acionarem pensamentos contraditórios, eles também pensam em como se devem aceitar e, como não aceitam, são lembrados de que, mais uma vez, estão a ficam aquém de onde deveriam estar e do que deveriam fazer.” Esta é uma ideia dramática porque mostra que os mais fragilizados são aqueles que podem ser mais prejudicados com estas leituras.

“Uma ideia que, infelizmente, ainda prevalece na nossa sociedade, não obstante a quantidade de literatura e de psicoeducação sobre o assunto, é a de que a psicologia ou a psicoterapia só são úteis para pessoas com doenças mentais. Isto é um absurdo”, garante Laura Alho. Mas é por norma nessa fase – em que ainda não se derrapou para a doença, mas já há problemas que estão a ser muito desafiantes – que se procura ajuda nos livros, muitas vezes com uma expectativa desajustada: a esperança de que eles funcionem como um processo de psicoterapia. “Os livros de autoajuda nunca substituirão um processo terapêutico”, alerta a psicóloga. “O verdadeiro conceito de autoajuda é procurarmos ajuda profissional para melhorarmos a nossa qualidade de vida. E, se a leitura for realmente importante, a pessoa deve encará-la como um complemento, nunca como um substituto de um processo terapêutico.”

E, ler por ler, talvez não seja mau investir também nuns bons romances, alvitra Nuno Gonçalves. “Há quem diga que são a melhor literatura de autoajuda porque conseguem traduzir as nuances psicológicas e os paradoxos e ambiguidades da alma humana.”