Valter Hugo Mãe

A amiga divorciada


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

As mulheres que se divorciam são invariavelmente acusadas de culpa. Se o casamento não deu certo a sociedade presume que a mulher falhou nos mimos essenciais que um homem parece exigir. A minha amiga divorciada está um pouco perplexa. Com facilidade lhe dizem que está maluca, família ou amigos. Só pode estar maluca para, com esta idade, partir para a vida como se fosse de começar muito outra vez. Para provar a sua sanidade, quantas vezes, acaba por se zangar e, de zanga em zanga, fica maluca.

Os homens que se divorciam, tantos meus amigos também, são mandados ao mundo como jovens outra vez, bocas cheias de fome no pasto largo das mulheres, como se fosse até bom que um homem se liberte perante tantas solteiras ou mal casadas. Os homens divorciados estão sempre certos e têm futuro. São glorificados pelo dinheiro, o bom emprego e o bom carro. Nunca são culpados. Estão incólumes aos erros que cometem. São mesmo criados à imagem de Deus.

A minha amiga enfrenta tudo depois das desconfianças. Quero dizer, qualquer encontro, nem que para comprar o pão, o jornal, para sentar no teatro ou espreitar o resultado do jogo pela montra do café, ela repara no paternalismo circundante, uma moralzinha parola que presume que está particularmente temperamental, irritadiça, de horários alterados, nervosinha, à procura não se sabe de quê. Todas as coisas do dia são sob julgamento e não pode passar na rua sem que lhe meçam a pressa ou o vagar, sem que lhe imaginem outro homem, ou vários, o quanto deve ser metediça ou má cozinheira. Deve ter sido negligente porque teve a arrogância de tirar um doutoramento, claro que não fez companhia ao marido, não dormiu com ele, coitado, precisou de ir procurar nas outras o que ela deixou de dar.

A minha amiga divorciada não está apenas a lidar com a fractura natural do fim de um longo casamento. Fractura essa que acarreta uma tristeza necessária, uma melancolia, a reaprendizagem do tempo a sós, o tamanho de uma sopa para um prato, o trabalho que dá cuidar de sua solidão. Ela lida com a agressão que chega pelo simples facto de ser mulher. Eu, que estou diagnosticado como um homem, fico fartinho de ver isto. Fartinho. Nem sei como não há uma máfia só de mulheres para partir de uma vez esta porcaria toda. Que exaustão, minha gente. Que exaustão.

Dizia alguém que, se ela não fosse burra, ficava caladinha e não perdia o marido. Como se admitisse ser prostituta para o próprio homem com quem se havia casado. Que glória haveria de ser, a vida inteira sem confessar o fim de um amor, apenas para garantir que continua a cozinhar para dois, a lavar a roupa de dois, a sonhar por uma felicidade comum que já não pode chegar.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)