A agonia do perfecionismo

A verdade é que parece haver uma relação entre a personalidade perfecionista e muitas formas de mal-estar psicológico

Aspiram a padrões de desempenho impossíveis, são excessivamente autocríticos e têm medo de errar. Mas esse é o paradoxo do perfecionismo: a tentativa de alcançar o inalcançável que limita o desempenho e leva à frustração. Este traço de personalidade aumentou nas últimas décadas, está associado a problemas de saúde mental e há já quem o considere um desafio de saúde pública.

Vanessa Daniela assume-se como uma perfecionista. “O que é péssimo”, acrescenta logo de seguida. Porque é claro que nada nem ninguém é perfeito e ela sabe disso. Mas, na altura de pôr essa premissa em prática, surgem as dificuldades. A instrutora de Pilates, de 39 anos, começa a ouvir aquela voz que, contra toda a lógica, diz “isso ainda não está perfeito”. E põe-se a lutar para alcançar um padrão inalcançável. Foi assim com a licenciatura em Educação Especial e Reabilitação. Terminou-a em 2006, mas só entregou a tese três anos depois, em 2009. “E foi um amigo que teve de me ajudar a concluir, fazendo ele a revisão, caso contrário, teria de repetir o estágio e fazer um ano extra, pois entraria no processo pós-Bolonha”, conta. Em 2009, quando fez a formação em Pilates, a história repetiu-se: feitos os testes teóricos, era obrigatório enviar um vídeo de uma aula real para concluir o curso. “Acabei por filmar mais de seis aulas, porque achava sempre que não estava perfeito. Até que uma amiga agarrou num dos vídeos e o enviou. Caso contrário, se calhar, até hoje não o tinha enviado.” Também esta demora a fez atrasar um ano o seu processo de certificação como instrutora.

“Podemos definir o perfecionismo como a tendência para estabelecer padrões de exigência excessivamente elevados, autoavaliação demasiado crítica e medo de falhar”, explica Ana Telma Pereira, investigadora do Instituto de Psicologia Médica, da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. A docente e investigadora na área da Personalidade e Regulação Emocional detalha que este traço de personalidade, relativamente estável ao longo da vida, surge principalmente em áreas de desempenho, como os estudos e o trabalho, embora se possa estender à educação dos filhos, apresentação, relações interpessoais e gestão do tempo. “Os perfecionistas julgam-se e sentem-se julgados pelo que fazem e não pelo que são”, resume a investigadora.

Mas ser perfecionista não é um tudo ou nada, um ser ou não ser. Há cambiantes e variações que fazem toda a diferença. O grupo de investigação de Ana Telma Pereira, liderado pelo psiquiatra António Macedo, traduziu e validou para a população portuguesa as principais escalas de avaliação deste traço de personalidade. E a investigadora refere que, em termos simplistas, há um perfecionismo saudável e um não-saudável. “O perfecionista positivo propõe-se a objetivos pessoais elevados, mas razoáveis e atingíveis. (…) Tenta explorar todo o seu potencial e quando atinge os seus objetivos, fica satisfeito. É organizado, arrumado e pontual, mas estas características não interferem no seu funcionamento normal. Em contraste, o perfecionista negativo estabelece objetivos muitas vezes irrealistas, inatingíveis e generalizados, o que o condena à insatisfação constante”, pormenoriza.

Um traço pouco amigo da saúde

Vanessa percebeu recentemente que talvez seja o desejo de não querer desiludir ninguém que a leva a esta busca. Depois de ter um linfoma, começou a sentir alguma ansiedade perante situações novas. Foi à psicóloga e veio de lá com uma pergunta: porque é que a sua preocupação é sempre com os outros e que não faz nada com um propósito e foco em si própria? Ficou também com a noção de que espera das outras pessoas o mesmo que julga que esperam dela. “Sou muito exigente com os outros, com os filhos, no trabalho, porque quero que tenham o mesmo nível de exigência que eu”, assume.

Considera que o único lado positivo desta característica é que, apesar da procrastinação, acaba por conseguir tudo aquilo a que se propõe, independentemente da dificuldade, porque não se poupa ao esforço necessário para isso. O lado negativo é que tanto empenho não vem sem um custo. “E é por isso que é péssimo: provoca-me desgaste físico e emocional. Fico esgotada psicologicamente. Com irritabilidade e sem paciência”, confessa.

A verdade é que parece haver uma relação entre a personalidade perfecionista e muitas formas de mal-estar psicológico. É aquilo a que se chama um traço transdiagnóstico, por ser comum a tantos quadros clínicos. “É um fator significativamente associado às perturbações depressivas, obsessivo-compulsivas e de ansiedade. Mas este traço também está associado a sintomas destas perturbações, como a ideação suicida e a outras condições como o burnout”, assinala Berta Rodrigues, psicóloga clínica e professora auxiliar na Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Católica Portuguesa.

A investigadora, que esteve envolvida em vários estudos sobre o tema em Portugal, refere ainda que esses trabalhos concluíram que este traço é também um fator de risco para perturbações alimentares ou do sono. São tantos os problemas que lhe estão associados que, defende, faz sentido que este traço de personalidade seja considerado em programas que promovam a saúde e previnam a doença. “E não apenas quando estamos já perante perturbações mentais de acordo com os manuais”, alerta.

As consequências do perfecionismo não são puramente individuais. “Há consequências a nível individual, com problemas de saúde psicológica e física, mas também interpessoal, como dificuldades relacionais e problemas de ajustamento familiar e societal, até porque os perfecionistas de hoje são especialmente sensíveis às mensagens veiculadas pelas redes sociais de que os seus desempenhos, o seu corpo, a sua família, a sua vida podem e devem ser perfeitos”, frisa Ana Telma Pereira. “As três décadas de investigação rigorosa do perfecionismo mostram que este traço tem um impacto negativo tão importante que, recentemente, foi considerado um problema de saúde pública.”

Onde a pessoa se cruza com o meio

Ninguém nasce perfecionista. Os genes têm um papel, é certo, mas é na interação com o ambiente que a característica toma forma desde cedo. A maioria das teorias centradas no desenvolvimento do perfecionismo olham para a influência do que há de mais fundamental na infância: a relação entre pais e filhos. E são muitos os comportamentos e estilos parentais que o podem alimentar.

“O perfecionismo pode desenvolver-se como uma forma de os indivíduos com vinculação insegura [que surge da indisponibilidade e não-reatividade dos pais às necessidades de afeto e estima] procurarem as sensações de aceitação e pertença, evitarem sentimentos de vergonha ou desamparo e se protegerem contra a ameaça da crítica e rejeição”, realça Ana Telma Pereira. “Depois, ao longo da infância e adolescência, comportamentos parentais como a pressão para ser perfeito, que envolvem uma combinação de elevadas expectativas e críticas, reforçam os comportamentos perfecionistas dos filhos”, conclui.

Hoje, de acordo com a investigadora, há um estilo parental que pode estar particularmente relacionado com a génese do perfecionismo: os chamados ‘pais-helicóptero”, que mostram um sobre-envolvimento e controlo da vida dos filhos. “Os pais atuais passam aproximadamente o dobro do tempo com os seus filhos do que os de há trinta anos”, constata a investigadora. E isso é bom, claro. Mas este tempo, particularmente em famílias com níveis socioeconómicos e de escolaridade mais elevados, é direcionado para atividades focadas no ‘sucesso’ da criança.

“A tendência para substituir o tempo de lazer por tempo de ‘estudo’ parece aumentar proporcionalmente com a competitividade do Ensino Superior e do mercado de trabalho. A mensagem subjacente de que algumas atividades são dignas de tempo dos pais – como a realização académica – enquanto outras não são – como o lazer e a diversão – pode reforçar comportamentos perfecionistas”, considera Ana Telma Pereira.

Mas os pais, seguramente, não são os únicos responsáveis. Até porque antes de serem pais são pessoas que vivem numa sociedade que também lhes impõe expectativas. Parece estar em curso um fenómeno social e cultural mais abrangente, como defende uma meta-análise publicada em 2017, que inclui amostras no total de quase 42 mil jovens americanos, canadianos e ingleses. “Os autores exploraram se uma política neoliberal, assente na competição individualista, na doutrina da meritocracia e em práticas parentais mais exigentes e controladoras, era acompanhada de mudanças neste traço de personalidade e concluíram que a atual geração de jovens apresenta níveis significativamente mais elevados de perfecionismo em todas as suas dimensões, comparativamente às gerações anteriores”, revela Berta Rodrigues Maia.

De facto, há evidência de que o perfecionismo aumentou cerca de 30% nas últimas três décadas. E saber baixar as expectativas, em relação a nós próprios e aos outros, e aceitar a imperfeição como parte da condição humana tornou-se hoje um assunto de saúde pública.