Valter Hugo Mãe

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Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Subitamente, entendo que a vida é uma colecção íntima. A família em torno da televisão a ver o Jô Soares, pouco mais de meia-hora sem susto, só alegria. O milagre de S. Bento. O regresso do meu pai. Todos os sorrisos da minha mãe. O fim do curso. O primeiro livro. Os filhos-dum-raio dos amores. Os sobrinhos

Completo, exactamente neste domingo, 51 anos de idade. Tenho planos para ficar quieto o dia inteiro, só a matutar no quanto já valeu a pena. Julgo que nestas datas necessito sempre de uma aceitação que não começa por me ser natural, mas é mais e mais claro que a idade vale demasiado. Quero dizer, que privilégio ter tido este tempo.

Sou, contudo, convicto de que a juventude apenas pode bastar. Uns dias de pura revelação podem justificar a vida. O tempo não é todo o mesmo, não toma nem leva o mesmo a cada instante. Muito ao contrário. Corremos por epifanias de redenção. Momentos nos quais cada dimensão se alinhe numa impressão de justiça, na impressão de nos ser justa a existência. Mais do que sabermos ter tudo, até porque nunca o teremos, importa sentir que não é injusta a nossa vida, não nos agride para lá do que suportamos, para lá da capacidade de ainda querermos continuar.

Subitamente, entendo que a vida é uma colecção íntima. A família em torno da televisão a ver o Jô Soares, pouco mais de meia-hora sem susto, só alegria. O milagre de S. Bento. O regresso do meu pai. Todos os sorrisos da minha mãe. O fim do curso. O primeiro livro. Os filhos-dum-raio dos amores. Os sobrinhos: o Hugo que não adormecia; a Bruna que deitava a casa ao chão; a Raquel que ferrava todos os pães; o Marquinho que dava os abracinhos mais lindos do mundo; a Bárbara que não me lembro de amuar; o Eduardo que era o menino mais maduro e esperto que já vi; e o Miguel a dançar e a pular numa contenteza cintilante.

Depois, as viagens todas e as pessoas que admiro, tantos amigos e festas, comidas esquisitas e saudades de casa. Sonhar uma casa, ou seja, voltar para algo sempre mais parecido com um sonho, ainda que tantas pessoas já não estejam e descubramos que o tempo também nos oferece as conquistas para uma maior solidão. Mas nós somos muitos. Entramos porta adentro com toda a maravilha que a vida nos deu como se entrássemos em multidão. É o que quero hoje. Estar nessa evidente multidão que me compõe por ter favorecido cada instante de redenção, como disse acima.

Vou estar múltiplo e gordo de memórias. Olharei para a casa e saberei muito bem como minha solidão é falsa. Porque todas as pessoas que amei haveriam de se sentar por aqui, nas namoradeiras ou nos cadeirões, na escada de pedra ou na eira, e falaríamos sobre o calor de setembro e a coisa boa de se ler bons livros. Depois, alguém haveria de fazer um caldo verde e tiraríamos a broa do forno e não seria necessário mais nada. A minha festa de aniversário é cada vez mais imaginária, porque as pessoas que amo são cada vez mais imaginárias, ou o amor é que se tornou um modo de lembrar. Penso melhor, a minha festa de aniversário usa cada vez mais a memória, não aceita não lembrar.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)