Vou ali e já venho
Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.
Para quem quiser saltar a cerca, homens ou mulheres, não há repressão que valha. Ao contrário, se a largueza for inocente, as pessoas voltam para o lugar onde são felizes.
O vizinho do lado sai de casa todos os sábados de manhã e eu imagino que vai comprar fiambre. Ir comprar fiambre faz parte de uma extensa lista de expressões codificadas do meu léxico de escritora. Significa que um homem precisa de sair de casa sem razão aparente, fugindo temporariamente do ambiente doméstico onde os miúdos correm em loop à volta do sofá e a sogra apareceu sem avisar. O macho veste o casaco e diz “vou comprar fiambre e já volto”, mesmo que no frigorífico exista um tupperware com 700 gramas do supracitado.
Ir comprar fiambre é como ir ao ginásio, ir comprar o jornal, ou ainda, como era moda entre os anos 1950 e 90, ir comprar cigarros. O importante é arejar a cabeça e carregar o corpo de oxigénio para aguentar o resto de fim de semana com os programas do costume, que incluem almoço de domingo em família, atividades com a pequenada, ou preguiçosas tardes em frente à caixinha mágica em modo “couch potatoe”. Até existe aquele mito urbano do homem que sai para comprar cigarros e se esfuma para todo o sempre, qual Dom Sebastião sem espada nem armadura, ou que regressa anos depois, armado em Ulisses. Tendo em conta que a Guerra de Troia durou quase dez anos e que o Mediterrâneo nem sequer é enorme, dá para inferir que nos dez anos seguintes o herói aproveitou para dar umas voltas por fora, escapando a ninfas letais e procurando aconchego nos braços de Circe, que tinha o poder, entre outros, de transformar animais em homens.
O homem caça e luta, a mulher intriga e sonha. Ancestralmente, o lugar da mulher era em casa, na povoação, como cuidadora e recoletora. Ao homem cabia lutar pelo território e caçar coelhos, javalis e outros. O Mundo sempre foi um lugar perigoso para as mulheres; viajarem, ou mesmo afastarem-se de casa, podia resultar em violação, rapto e subsequente venda como mercadoria, o que ainda hoje acontece. Durante os períodos de guerra, os conventos serviam de abrigo para muitas, as que tinham posses para ali permanecerem até ao regresso dos maridos. O Mundo foi assim durante milénios, eles mais fora do que dentro e elas à espera deles.
E hoje que as mulheres trabalham fora de casa, que conquistaram voz e espaço nas empresas, que assumem cargos de chefia e que, por vezes, ganham mais, porque é que os homens continuam a ir comprar fiambre?
Acredito que as mulheres mudaram muito depressa, enquanto os homens não. Queremos ser todos politicamente corretos, aceitar o sistema de quotas desde que haja mérito, acreditar que somos iguais, mas no fundo sabemos que não é bem assim. Não conheço nenhum homem que não se sinta grato, mimado e feliz quando a mulher lhe serve o prato, mesmo que tenha sido ele a cozinhar o almoço. E que não goste de chegar a casa e de ver as crianças de banho tomado, risca feita e roupão perfumado, já tudo despachado para ir dormir depois do jantar. Os homens precisam de ir comprar fiambre porque sim, tal como as mulheres precisam de arranjar as unhas e de pintar a raiz. É inerente ao género. Por isso, mais vale aproveitar para lhes pedir que tragam um frango assado ou um quilo de bananas.
Dar espaço é preferível a um sistema de açaime emocional equivalente a uma pulseira eletrónica de prisão conjugal. Para quem quiser saltar a cerca, homens ou mulheres, não há repressão que valha. Ao contrário, se a largueza for inocente, as pessoas voltam para o lugar onde são felizes.
E o fiambre que sobrar tem sempre serventia para um empadão.