Rui Cardoso Martins

Voo interno de quatro metros

(Ilustração: João Vasco Correia)

Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

Ela entrou logo a matar, ou melhor, a não morrer:

– No dia em que ele me tentou matar, eu fingi-me de morta.

Então o discurso anterior, a táctica do ex-namorado, começou a mudar de sítio, a reencontrar um lugar violento dentro da casa. Uma casa a ruir à frente de todos.

Meia hora antes, ao interrogar o homem, o juiz pedira-lhe que respondesse “se é verdade, se não é verdade, se há coisas que são verdade e outras não”. O homem admitiu “verdades”, contestou “mentiras”, outros factos disse que não foi bem assim. Rodrigo e Vânia viveram como casados entre 2018 e 2019. E na mesma empresa, sempre em discussão. Diz Rodrigo:

– Pontapés nunca dei. Há aí coisas que eu admito, são verdade sim senhor, mas há outras que não são. A Vânia tinha o hábito de me chamar filho da puta, que é um nome de que eu não gosto e lhe pedia várias vezes para não dizer.

Rodrigo falava com mansas falas, polidas, suavizando.

– Confirmo, mas apertar era agarrar a cabeça. Não com força.

O centro da defesa era o seu carácter, a pureza versus vil metal.

– A Vânia tem um objectivo muito claro, que é dinheiro. E eu não sou muito… como é que eu hei-de explicar? O meu objectivo não é só dinheiro na vida. Uma vez estava no shopping a almoçar com ela e passou um senhor que estava com fome e pediu-me para lhe comprar algo, e eu fui com o senhor comprar as coisas ao restaurante. E ela virou-se para mim e disse: “Lá estás tu sempre a dar tudo a toda a gente”. Eu na minha família tinha sido habituado a ajudar as pessoas, foi a educação que os meus pais me deram.

Um dia, ela exigiu-lhe que saísse de casa, “ao que terá respondido que a mesma era desprezível, que a própria mãe dela não gostava dela, que Deus não lhe dava filhos, que nunca ia ser ninguém, que era obcecada por dinheiro, que nunca ninguém a iria querer”.

– Devo ter dito essa frase. Mas em relação à mãe, eu até lhe dizia que achava que devia contactar a mãe. Estavam de relações cortadas e pelos vistos acho que era por dinheiro.

Que, continuou o juiz, “o senhor a perseguiu para o quarto, que a atirou para a cama, que colocou o corpo sobre ela”.

– É preciso dizer que ela deu-me com um candeeiro que tinha no quarto, no braço, foi quando eu a amandei para a cama.

– Agarrou-a com força, sacudiu?

– Sacudi. Ela caiu para cima do sofá. Eu não a atirei. Acredito que tenha dito que a odiava, sim. De seguida, ela lança-me as mãos ao peito, arranhou-me, e eu dei-lhe uma estalada.

Só quer seguir com a sua a vida e a Vânia a dela. “Ter paz.”

Depois, infelizmente para Rodrigo, entrou Vânia. A vítima:

– Não gosto de estar na presença dele, mas eu falo tudo. Eu consegui que ele saísse de casa, depois de me tentar matar lá dentro. Nós não vivíamos já como marido e mulher.

Foi então que a suposta interesseira, a que só pensa em dinheiro, contou coisas que não se inventam. Que era sempre por causa do dinheiro, ele queria sempre ter acesso às contas da empresa, estoirava tudo o que conseguisse agarrar.

– Disse que se eu não lhe passasse as quotas para ele, ele me ia matar, então eu disse-lhe a ele que tinha de me matar. Ele tapou-me a boca, tentei defender-me com o candeeiro de mesa que tinha ali e ele pegou na minha cabeça… eu estava na ponta do quarto… ele pegou na minha cabeça e eu… voei. Voei desde a porta do quarto até ao sofá. Foi ele que me atirou pela cabeça. Ele voou em cima de mim e deu-me uma chapada com toda a força. Atirou-me por cima da cama, prendeu-me com o braço, a tentar asfixiar-me. Essa foi a primeira vez que me disse que me ia matar.

Dormia no sofá, recusava-se a sair. Noutra discussão:

– Disse que ia desfigurar a minha linda cara, pôs-se em cima de mim, a calcar o meu pescoço, a dizer que hoje eu ia morrer. E eu pensei: vou morrer…

Já vi mentirosos e mentirosas e tenho a certeza de que uma mulher que mente não chora assim. Solavancos dolorosos até de se verem.

– Eu estava a ficar sem ar. E ele a prender-me as pernas. Com o braço a sufocar-me e a dizer-me ao ouvido que me ia matar, que me ia matar. E eu fingi-me de morta. Eu fingi-me de morta. E ele continuou.

Quando ele foi à casa de banho, ela fugiu. Vânia entrou descalça na esquadra.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)