Cotoveladas, mãos fechadas com mãos fechadas, costas com costas substituíram os cumprimentos, o toque, o contacto pele com pele. As máscaras ocultam sorrisos e as regras retraem. E depois de tudo isto, adultos e crianças serão capazes de voltar aos afetos?
António Deodoro, consultor financeiro, de Aveiro, DJ durante alguns anos, habituado a festa, tem o coração ao pé da boca. “Sou uma pessoa de abraços, de contacto, é muito importante ver a boca a sorrir.” A pandemia trocou-lhe as voltas de tal maneira que teve de reaprender a viver sozinho e a contrariar a vontade de sair e estar com os amigos. “É uma altura muito constrangedora, não sabemos muito bem o que havemos de fazer.” Aquela dualidade constante de sentimentos, sobretudo com os pais. “Quero e preciso muito de sentir os abraços, os beijos, e não o posso fazer para lhes dar colo, conforto, estar ao pé deles.” Não tem sido fácil. Retrair sentimentos, abafar vontades, contrariar emoções. “Vamos dançando conforme a música”, confessa.
Há dez anos, Gisela Silva andava pelo Bairro Alto, em Lisboa, a distribuir abraços a quem passava na campanha Free Hugs. Costuma dizer que pertence à “tribo dos abracinhos”. Quem a conhece sabe porquê. É educadora de infância em Aveiro, ensina a brincar, a jogar à macaca, ao elástico, ao Stop, organiza partidas de futebol com crianças do 1.º Ciclo nas atividades extracurriculares em várias escolas da cidade. “Os miúdos são muito do abracinho, do beijo.” Com a pandemia, a estratégia foi colar costas com costas, contrariando a espontaneidade dos mais pequenos. Beijos e abraços foram abafados. “Dizer a uma criança que não se pode dar um abraço é uma coisa terrível”, desabafa. “Encostamos costas com costas 30 segundos para sentirmos as omoplatas uns dos outros.” Perante as regras, dificilmente poderia ser de outra forma.
Será que voltaremos a cumprimentar sem medo? Ana Pinheiro, psicóloga clínica, não vacila. “Claro que sim. Seria um problema para o relacionamento a eliminação total do cumprimento. É algo implícito na nossa cultura. Necessitamos de afeto”, responde. Se beijos e abraços deixarem de acontecer, então, há um problema bem sério para resolver.
Rute Agulhas, psicóloga clínica e terapeuta familiar, concorda. Sim, vamos voltar ao que era antes. Beijos e abraços não farão parte do passado. “Os seres humanos precisam do toque e do contacto físico. Beijar e abraçar são formas não-verbais de expressar amor, carinho, amizade, admiração e suporte. E a comunicação não-verbal é uma forma de comunicação tão importante como a comunicação verbal. Complementam-se e fortalecem os laços afetivos que estabelecemos com as outras pessoas”, sustenta.
Os meses vão passando, as máscaras continuam nos rostos, não há beijos, não há abraços, nem sequer apertos de mão. Pedro Martins, psicólogo clínico e psicoterapeuta, vê, no entanto, alguns sinais de mudança, de maior tranquilidade, já há gente sem medo de cumprimentar familiares e amigos próximos, agora que a vacinação está em curso. “Temos de cumprimentar o outro com ou sem contacto físico. Ambos implicam que as pessoas estão juntas, que se encontram por algum motivo. Isso parece-me o mais importante, que as pessoas possam estar juntas, independentemente da forma como se cumprimentam.”
Sem retirar importância ao contacto, ao toque, há, contudo, uma realidade que desarma, que deixou de acontecer. “A saudação daquela pessoa que conhecemos mal (ou não conhecemos de todo), aquele bom dia com um sorriso nos olhos, que nos faz, mesmo estando trombudos, sorrir de volta e oferecer um bom dia a um ‘desconhecido’”, repara o psicólogo.
Instintivo, genuíno, sinal de amor
António Deodoro vai-se adaptando às circunstâncias. No ano passado, final de outubro, altura do seu aniversário, Halloween, pensou num plano B, três ou quatro jantares em casa para comemorar e não correr riscos. Nada feito. O nível de contágios subiu, não houve jantares. Toda esta contenção de afetos é complexa de gerir. “Fica difícil viver sem abraços. Vivo sozinho, tive alguma dificuldade em estar sozinho, tive de redescobrir estar sozinho, aprender a conviver com isso.” Em seu entender, as cotoveladas e mão fechada com mão fechada farão parte do passado num futuro próximo. “Quero acreditar que sim, que voltaremos a cumprimentar como antes.” Não será de um segundo para o outro. “Quem é do abraço vai voltar a ser do abraço.”
Gisela Silva também acredita que é possível voltar ao que era. “Quem tinha esse hábito, do beijo e do abraço, tendo falta dele, vai voltar a tê-lo. Quem não tinha, será difícil tê-lo. O ser humano é um ser de rotinas e de hábitos.” O mesmo para os mais novos. “As crianças que eram do abraço continuarão a ser do abraço, embora sintam o bloqueio do adulto, aquela ideia do contagioso, que agora não pode ser.”
Com a filha, de nove anos, os afetos do costume. Beijos e abraços a qualquer hora para contrariar a tristeza trazida pelas circunstâncias. Chegaram a arranjar mangas de plástico para os abraços à avó. Com tantas regras e tanta informação, a família é crucial, o exemplo dos pais é essencial. Haverá marcas depois de tudo isto? “Depende do tempo que isto durar. As mazelas para quem não era do abraço e do beijo podem ser maiores”, diz Gisela Silva.
Esta é uma fase que ditou o distanciamento social em nome da saúde pública por força de uma pandemia. Irá passar como todas as etapas passam e a experiência prévia e a necessidade inata de contacto não desaparecem, segundo Rute Agulhas que confia que a normalidade regressará. “A proximidade física depende de variáveis pessoais (como a personalidade) e culturais e acredito que, em breve, voltaremos a estar com as outras pessoas da mesma forma que antes estávamos.” A saudade de beijos e abraços puxa para voltar ao padrão que existia anteriormente, logo que seja possível. “A médio prazo, penso que voltaremos aos mesmos hábitos e comportamentos que anteriormente tínhamos, ainda que de uma forma gradual”, sublinha a psicóloga.
Quem se conhece, cumprimenta-se. É instintivo, natural, sinal de afeto. “Os abraços e beijos entre conhecidos são implícitos e fazem parte do comportamento humano e social. Acho que os abraços e beijos sempre existiram mesmo com esta pandemia”, adianta Ana Pinheiro. E o hábito português de cumprimentar com um beijo quem se acaba de conhecer? Ficará ou desaparecerá? “É uma reação automática, o ato de cumprimentar o outro. Poderá não ser através do beijo, algo que já acontecia em ambientes mais formais, mas poderá ser pelo aperto de mão.” Ana Pinheiro vê mais cautela com a pandemia, evita-se o contacto próximo.
A normalidade voltará. Ana Pinheiro acredita que assim será. “O ser humano está formatado para o contacto social, é inato em nós e quando nos sentirmos seguros, iremos adotar, novamente, esses cumprimentos.”
Crianças menos beijoqueiras? Talvez não
As crianças mais velhas lembram-se dos beijos e abraços antes da pandemia. “Essa memória não desaparece, perdura e irá permitir que voltem a adotar esses comportamentos a médio prazo”, refere Rute Agulhas. “As crianças mais novas, nomeadamente as que já nasceram em pandemia, irão perceber que beijar e abraçar são comportamentos que também podem, e devem, ser estendidos a pessoas que estão fora do seu círculo de pessoas de referência mais próximas.” E acrescenta que não se pode “esquecer que as crianças aprendem também por observação, pelo que é fundamental que os pais e adultos reconheçam este papel enquanto modelos e mostrem que estes comportamentos são, não apenas seguros, mas também desejáveis”.
Pedro Martins não exclui várias hipóteses, gente menos beijoqueira, mudanças no hábito de cumprimentar com beijo quem se acaba de conhecer. “Talvez se possam verificar mudanças nesse nosso hábito. É provável que elas já estivessem em curso. É verdade que para várias pessoas cumprimentar com beijos alguém que acaba de se conhecer sempre representou um desconforto.” O que pode ser mais evidente, em sua opinião, é a velha questão de forçar ou não forçar as crianças a beijar os adultos. “É possível que algumas alterações nos comportamentos, devido à pandemia, possam prevalecer. Mas, no geral, caso as vacinas e a existência de um tratamento se massifiquem, voltaremos à ‘normalidade’. Não a dita ‘nova normalidade’, que de alguma forma nos é imposta, mas a ‘nova normalidade’ de acordo com pequenas alterações na forma de estar”, defende.
A pandemia obrigou a mudança de hábitos, alterações repentinas, e ninguém estava preparado. Pedro Martins considera que os idosos e pré-adolescentes sentiram o impacto com mais força. “A faixa etária entre os 12 e os 16 anos terá sido, juntamente com os idosos, aquela que perdeu mais. Trata-se de um período de transição onde a presença junto dos pares é muito importante. Nesta idade, ainda precisam muito dos pais para intermediar as relações com os outros, não têm capacidade de o fazer sozinhos como os adolescentes”, explica. “Ao mesmo tempo começam – e é importante que o façam – a afastar-se dos pais, coisa que não foi possível”, acrescenta. Para os idosos foi e tem sido dramático.
Crianças pequenas não terão sentido tanto, ficaram perto dos pais e mais tempo do que era habitual. “Caso os pais não se tenham desorganizado com a situação (teletrabalho, aulas online, mais de um filho, etc.), e mantido o equilíbrio, podem ter sido momentos muito ricos a nível emocional”, afirma. “Os adolescentes já tinham a sua rede afetiva, e melhor ou pior, encontraram formas de se manterem ligados.” Seja como for, Pedro Martins acredita no poder do afeto e nos exemplos de casa. “As crianças que nunca deixaram de ser beijadas pelos pais, outros familiares e pessoas próximas, vão beijar e abraçar os outros. Felizmente!”
Ana Pinheiro considera que uma pandemia não será capaz de derrubar manifestações de afetos. As crianças serão capazes de voltar aos beijos e abraços? “Considero, enquanto psicóloga, que serão sim, e muito. Beijar e abraçar o outro é importante para a promoção e desenvolvimento emocional. Caso não sejam capazes, teremos de ser nós, adultos e figuras de referência, a promover e a incentivar estes atos e trocas de afeto.”
Em todo o caso, é natural haver receio no atual contexto. Rute Agulhas aborda essa questão: “O medo é uma emoção que, até certo ponto, é adaptativa, e é dessa forma que devemos pensar. Em pandemia e epidemia, é desejável que este medo seja ativado, levando-os a adotar comportamentos mais adequados”. “Não deixando, porém”, acrescenta, “que o medo atinja uma intensidade demasiado elevada ou que perdure no tempo quando a situação adversa estiver ultrapassada”.
Beijos, abraços, pele com pele, lábios com lábios. Não será um vírus a derrubar o afeto, o amor. Pedro Martins reforça a ideia. “Os abraços e os beijos fazem parte do passado, do presente e farão parte do futuro. Não se vive sem beijos, nem que seja em desejo. As mães e os pais continuam a beijar os filhos, os casais continuam a beijar-se, e ainda bem.”