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Vestir a cultura para não a deixar morrer

Sapatos da marca Entrudo, inspirada no carnaval de Podence

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A moda é uma via de excelência para a manutenção de saberes e tradições em risco com o desaparecimento das gerações mais antigas. E os consumidores valorizam cada vez mais a história por trás dos produtos.

As redes sociais impõe-nos viver no imediato e, muitas vezes, os produtos são comprados sem estarem associados a algo mais profundo do que a materialidade. Mas há projetos e marcas que procuram distanciar-se do vazio da fast fashion e utilizar a moda para criar laços e contar histórias. No final, acreditam os criadores, ganham os dois lados: o património, por ver um legado representado e perpetuado, e a moda, por aprender com saberes e raízes nacionais.

Trás-os-Montes, Macedo de Cavaleiros, Podence. Os fatos vistosos, as máscaras coloridos e os chocalhos barulhentos. Os sapatos e acessórios da Entrudo levam-nos a viajar pelas sensações e imagens de um dos carnavais mais famosos do país, reconhecido como Património Cultural Imaterial da Humanidade pela Unesco. Foi da paixão de Susana Ribeiro pelas cores e criatividade que o Carnaval inspira que a marca nasceu. A designer de moda quis conciliar os saberes do marido, Miguel Duarte, na área do calçado, com o desejo de voltar à indústria. “A ideia foi transportar a riqueza dos materiais e dos fatos para algo diferente.” E assim nasceram os sapatos com franjados coloridos.

Além das cores, também os materiais – lã, ráfia e juta – são exemplos da inspiração no Entrudo Chocalheiro. O nome dos modelos é mais uma homenagem às origens. “Cada produto faz referência a uma terra da zona”, explica a fundadora e responsável da Entrudo, marca criada em 2017. No futuro, tenciona “avançar para outros carnavais” e criar mais produtos com novas tradições.

Susana Ribeiro garante que parte do sucesso é responsabilidade da história que é contada. “As pessoas querem perceber o porquê e a raiz dos produtos.” A promoção dos Caretos é outra das preocupações, “fazendo publicidade ao património que inspira e nomeia a marca e os produtos”.

Da serra para a nova geração

Promover a origem dos produtos é também objetivo e promessa do Projeto Serra. Nascido em janeiro passado, chega ao público com a “ligação à Natureza, às pessoas e às tradições”, enumera Tiago Pinto, cofundador da marca juntamente com mais dois primos. A ideia surgiu do encantamento pelas serras. “Estava a ver uma reportagem sobre a serra do Soajo e fiquei focado nas pessoas, que utilizavam uma capucha de pastor”, conta o jovem. Daí a criar a marca foi um passo. O objetivo é “reavivar a memória dos trajes típicos” e adaptá-los às novas gerações, “que muitas vezes nem conhecem o próprio património”.

A oferta do Projeto Serra assenta em quatro modelos, cada um com o nome de uma serra portuguesa. A camisola “Pico” tem na cor predominante, o verde, uma referência aos Açores. Das típicas carpetes longas e riscadas nasce o padrão que constitui o bolso. Já o botão, em vime, vem das tradições de artesanato da zona. Todos os pormenores contam. A “Estrela” apela à infância. “Toda a gente já teve umas pantufas castanhas com pelo de ovelha tão características da Guarda” e, tanto pela cor como pelo material, o modelo inspira-se na tradição daquela serra. Já as camisolas “Soajo” e “Freita” ganham vida pelas cores que os locais invocam, o amarelo e o cinzento, respetivamente.

Mas a história contada por cada camisola não é a única mensagem que os três primos querem transmitir. “É mais do que uma marca de roupa, queremos ter um impacto na sociedade”, nota Tiago Pinto. Para trabalhar com as localidades que homenageia, o Projeto Serra apoia monetariamente projetos locais e encomenda a produção a artesãos.

Já a SirTile, marca de meias nascida em 2019, promove os azulejos portugueses. João Portas sintetiza que “a ideia é usar os padrões vastos e ricos dos azulejos num produto útil, versátil e fora do normal”. Ele e a colega de curso, esposa e sócia, Paula Cortez, criaram a marca com a intenção de promover um património gráfico e cultural. Os azulejos eram a escolha perfeita.

“Dizemos onde podem encontrar os azulejos e, muitas vezes, os clientes têm curiosidade de ir conhecer o que inspirou o produto que acabaram de comprar”, refere o coproprietário da SirTile, marca com loja própria na cidade do Porto. A curiosidade vem maioritariamente do público estrangeiro, descrito por João Portas como educado e interessado, que vê na SirTile uma forma inteligente de transportar a cultura para uma peça do dia a dia. “Percebem o conceito e aceitam utilizar aquela forma de cultura no corpo.”

Quanto à ligação do património à moda, João Portas não tem dúvida das vantagens: “Para quem não sabe como pode ser criativo e diferente, basta olhar para o nosso lado, para a nossa rua, para a nossa cidade”. E inspirar-se. A cultura não pode ser apenas de “pousar na prateleira, é possível e necessário tornar o património em algo útil e que possamos levar connosco”.

As vantagens repercutem-se dos dois lados, assegura a estudante de mestrado Daniela Duarte, que se associou a um dos vários projetos de moda e património apoiados pela Universidade Lusófona. “O artesanato é valorizado e trazido para os holofotes, ao mesmo tempo que a moda aprende com os saberes ancestrais”, sustenta a investigadora, que desenvolveu o seu trabalho com base nas rendas de lérias, originárias da Póvoa da Atalaia, Fundão. Na sua opinião, estudos desta natureza são úteis para reunir informação, muitas vezes inexistente, sobre tradições importantes para o país.

E como transformar património em moda? Para Daniela Duarte, o processo foi reinterpretar os usos. “A renda das lérias aparece na origem como aplicação acessória e eu idealizei-a como peça de roupa por si só.”

A coordenadora dos projetos, a diretora do curso de moda Alexandra Cruchinho, resume que o objetivo é “valorizar o património e identidade cultural do país e aplicá-lo à moda”. Para isso, importa uma abordagem sustentável, económica e social e integrar os saberes de pessoas idosas nos projetos.

Património além-fronteiras

Também sob tutela da Universidade Lusófona insere-se o trabalho desenvolvido pelo designer Carlos Gil com o cobertor de papa. O património com origem na cidade da Guarda é, nas palavras de Alexandra Cruchinho, “um elemento tradicional de lã de ovelha”. E, apesar de as características não permitirem um toque agradável à pele, Carlos Gil quis dar-lhe um lado prático e útil. Do património “reinventado e com uma nova imagem”, o designer criou pufes e carteiras. “Não quis fugir à cor e ao material a que me propus trabalhar. Larguei o cobertor e trabalhei produtos diferentes e com utilidade”, pormenoriza Carlos Gil.

Com a ligação à moda, a cultura portuguesa já voou para outros países. Depois de ter passado pela Moda Lisboa, a coleção de Carlos Gil inspirada no cobertor de papa encontra-se atualmente na Expo Dubai “e está a ter grande visibilidade e sucesso”, destaca.

O designer considera essencial a parceria entre moda e património, principalmente para a sustentabilidade social. “Temos de pensar nas pessoas que ainda trabalham estas tradições, que são poucas. O saber é eterno, mas elas não.” E para haver mais projetos como o desenvolvido com o cobertor de papa e as rendas de lérias, que divulguem artes em risco de esquecimento, Carlos Gil defende que “os designers têm de ter o apoio das entidades, com dados e incentivos”.

A Universidade Lusófona lançou o desafio de reinterpretar o cobertor de papa, da Guarda, e Carlos Gil desenvolveu uma coleção que já chegou ao Dubai

Daniela Duarte investigou e trabalhou as rendas de lérias, do Fundão, dando-lhes novos usos

João Portas e Paula Cortez viram nos padrões e cores dos azulejos portugueses a oportunidade perfeita de lançar uma marca, a SirTile

As camisolas do Projeto Serra são inspiradas no Pico, no Soajo, na Freita e na Estrela, e nas pessoas que nelas habitam

Os carnavais cativam Susana Ribeiro e o de Podence levou à criação da Entrudo, marca de sapatos e acessórios