Venda de suplementos dispara sem provas de eficácia

Um sistema imunitário estável, eficaz e competente depende de muitos fatores diferentes

A pandemia fez disparar a procura de produtos que prometem melhorar a resposta do sistema imunitário. Os especialistas só recomendam quando há défices e garantem que suplementar só porque sim tem riscos.

Noutros tempos, as nossas avós comiam laranjas durante o inverno para aumentar a vitamina C. Era a estratégia popular para reforçar o sistema imunitário e dar conta das infeções virais da estação fria. Mas o Mundo girou e os suplementos vitamínicos passaram a ser uma alternativa em cima da mesa. Não há provas de que a suplementação aumente a capacidade do sistema imunitário de combater uma infeção e, talvez por isso, os especialistas dividem-se. Uma coisa é certa: a automedicação não é o caminho e os multivitamínicos de A a Z também não.

Em ano de pandemia, a procura por suplementos imunoestimulantes disparou. Em 2019, até novembro, nas farmácias portuguesas, venderam-se pouco mais de 270 mil unidades. E no ano passado, no mesmo período, foram comercializadas mais de 560 mil embalagens, com um preço médio de 16,30 euros, ligeiramente abaixo do preço médio nos anos anteriores. O número de vendas mais do que duplicou em 2020, segundo dados do Centro de Estudos e Avaliação em Saúde, da Associação Nacional das Farmácias.

Os portugueses gastaram mais de nove milhões de euros em preparações imunológicas no ano passado. O receio gerado pela covid-19 poderá explicar o grande aumento da procura, que já vinha a fazer-se sentir nos últimos anos. Mas até que ponto é que a suplementação pode aumentar a capacidade de resposta do sistema imunitário a microrganismos invasores?

“É algo controverso. O sistema imunitário é uma resposta altamente orquestrada entre vários elementos. Não há ainda evidência de que reforçando alguns minerais ou vitaminas se obtém no final um papel preventivo”, clarifica Margarida Saraiva, presidente da Sociedade Portuguesa de Imunologia.

Das vitaminas, como a D e a C, aos minerais, como o cálcio, o ferro e o zinco, a resposta à pergunta sobre se devemos tomar suplementos não é uma linha reta. “No geral, suplementar não será suficiente para atingir um resultado positivo. Pode ajudar, não acho que vá fazer mal. Mas deve sempre recorrer-se a um médico, um nutricionista, um farmacêutico. Não sou a favor da automedicação, é uma questão de bom senso”, aponta Margarida Saraiva.

Num sistema complexo, uma orquestra quase sempre perfeita, “há células que funcionam como uma primeira linha de defesa transversal a todas as infeções e há células mais especializadas num agente infeccioso, que produzem anticorpos e tendem a aumentar a resposta para um determinado agente”. As vitaminas e os minerais fazem parte da dinâmica celular, as células do sistema imunitário dependem deles. “Se estiverem em baixo, ficamos com uma alteração da função básica dessas células”, explica a imunologista, acrescentando, contudo, que a “participação de alguns nutrientes na resposta imunitária ocorre em fases muito específicas e é difícil assegurar que temos a quantidade certa de ferro, por exemplo, no momento certo”. Daí que seja difícil perceber como é que a resposta imunitária vai funcionar com a suplementação de um nutriente.

Certo é que um sistema imunitário estável, eficaz e competente depende de muitos fatores diferentes. “Há pessoas que têm mutações de um determinado gene que as torna mais vulneráveis e isso é um fator interno. Mas também há os fatores externos que tornam o sistema imunitário mais vulnerável, como fumar e beber álcool.”

Não há alimentos nem suplementos milagrosos

Sara Pinto concorda. O ideal para um bom sistema imunitário, sublinha, é ter hábitos de vida saudável, “em que a alimentação tem um papel primordial”. Segundo a nutricionista, uma alimentação equilibrada já deve fornecer probióticos, ácidos gordos insaturados como o ómega 3, polifenóis, vitaminas e minerais. Mas, “no caso de ser detetada alguma deficiência nutricional, através de análises bioquímicas”, que não seja suprimida com a alimentação, “faz sentido recorrer-se à suplementação”. Sempre depois de “consultar o médico ou nutricionista para avaliar” essa necessidade, vinca Sara Pinto. “A autoprescrição é um risco para a saúde. Cada indivíduo é único, por isso, a prescrição de suplementação deve ser personalizada.”

A especialista em nutrição deixa um aviso: “Não há alimentos nem suplementos milagrosos para esse efeito”. Mas há cuidados que todos podemos ter: procurar produtos que exibam na embalagem a alegação de saúde da European Food Safety Authority, com a indicação de que contribuem para a manutenção do normal funcionamento do sistema imunitário. Sara Pinto sentiu a crescente preocupação com o sistema imunológico durante a pandemia. E ressalva que, embora não haja nenhum nutriente específico para prevenir a covid-19, “as vitaminas C, D e as do complexo B e os minerais zinco e selénio contribuem para um bom funcionamento do sistema imunitário e uma menor suscetibilidade a infeções”.

Estudos recentes têm dado a conhecer que indivíduos infetados com covid-19 têm deficiências nutricionais, em que a mais preocupante é a vitamina D, e que alguns doentes hospitalizados apresentam uma pior saúde intestinal, “isto é, uma diminuição das bactérias anti-inflamatórias”. E isso, diz a nutricionista, demonstra “a importância de ter níveis adequados de vitamina D e até a necessidade da sua suplementação para corrigir os défices”. Paralelamente, defende, suplementação com “prebióticos e probióticos pode ser uma estratégia interessante para repor a flora intestinal saudável e, assim, melhorar a resposta imunitária”.

Automedicação é desperdício de dinheiro

Lilian Barros, também nutricionista, reconhece que hoje há mais necessidade de suplementação. Por uma razão. “Vivemos cada vez mais a explorar o solo e a Natureza e a verdade é que os solos estão mais empobrecidos nutricionalmente. Os hortícolas já não são tão ricos como eram há dezenas de anos. É natural que precisemos de suplementação.” Ainda assim, rejeita a ideia dos multivitamínicos de A a Z e alerta que “tomar vitaminas só porque sim é completamente desadequado” e até pode ser prejudicial à saúde. “Suplementar por suplementar é, por um lado, um desperdício de dinheiro, e por outro, um risco, porque há vitaminas que não são eliminadas pela urina e que podem ser prejudiciais em quantidades elevadas.”

O inverno é a época de maior procura, por ficarmos mais suscetíveis a viroses. “O problema é que houve muita autossuplementação e o importante é as pessoas aconselharem-se para não serem vítimas do marketing.” A nutricionista simplifica: “Suplementar é como as dietas. O que resulta para mim não resulta para outra pessoa”. Num ano atípico no que toca a esta preocupação, Lilian Barros esclarece ainda que “por tomar vitamina D”, por exemplo, tal “não significa que não vá ser infetada” por covid-19. “Significa é que vou estar mais capacitada a responder sem complicações à doença, e isso vale para a gripe também.”

Ausência de evidência

Do outro lado da barricada, há também quem defenda que os suplementos não são necessários. “Temos tudo o que precisamos na nossa dieta normal”, observa Alexandre Carmo, especialista em imunologia da Universidade do Porto. “Temos um sistema imunitário que funciona perfeitamente. Se há coisa que esta pandemia mostra é que num número tão grande de gente contaminada, as pessoas com formas graves da doença são raras, pelo que o nosso sistema imunitário é muito forte.”

O imunologista reconhece que há condicionantes que podem fragilizar o sistema imunitário, desde o stresse ao cansaço, mas o nosso corpo “está preparado para combater” todas as ameaças. “Todas as vitaminas são necessárias, mas vivemos milhões de anos sem precisar de suplementação.” Ainda assim, o especialista admite o recurso a suplementos quando há défices diagnosticados.

Alimentação saudável, exercício físico ou horas de sono: tudo pesa para termos um sistema imunitário capaz. E esse é o principal conselho que o presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar dá nas suas consultas. Nuno Jacinto é claro quanto ao uso de suplementos: “Não é uma questão de sim ou não. Há ausência de evidência, mas não significa que não haja eficácia. Há efetivamente pessoas que se sentem melhor quando tomam suplementos vitamínicos”. Como não exigem prescrição, a toma de suplementos foge ao controlo dos profissionais de saúde, que adivinham, contudo, maior procura no outono e inverno.

Mas o médico alerta: “Se uma pessoa se sente cansada ou doente frequentemente, é importante perceber as causas. Provavelmente, até nem é défice vitamínico. Temos de ponderar bem a utilização destas substâncias antes de o fazermos de forma imediata”. Para Nuno Jacinto, não há fórmulas nem segredos para reforçar o sistema imunitário. Há antes conselhos transversais: “Devemos evitar excessos de açúcar, fritos e gorduras, álcool, óleos, alimentos processados, enlatados. E temos que apostar nos grelhados, peixe, carne branca, legumes, vegetais, frutas, cereais”. O desafio da comunidade médica é o de levar os doentes a alterar hábitos. “É a medicina preventiva. É preciso insistir, insistir, insistir.”