Uma procuradora em fúria
Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.
A manhã alongava-se em casos e a tarde adivinhava prolongamentos.
– A senhora procuradora precisa de almoçar, tem coisas para fazer à tarde, outros julgamentos, avisou a juíza, e a procuradora da República, à sua direita, agradeceu.
A juíza resumiu-lhe o caso a seguir: uma senhora tinha de pagar 25 mil euros de dívida, mas só pagou 16 500. A procuradora fez “ah”. Entrou uma mulher madeixada, de gestos nervosos. Uma burlona de 50 anos, com modos de pequena diplomacia de bairro. Em 2015, lembrou-lhe a juíza, foi condenada por burla informática e furto qualificado a dois anos e seis meses de prisão, suspensa por igual período, sob a condição de pagar à ofendida a quantia de 25 mil euros no prazo de dois anos e quatro meses.
– E a senhora foi fazendo o pagamento e já pagou 16 500 euros, faltando portanto pagar 21 607 euros. Nós queremos saber, se nos quiser explicar, porque é que ainda não pagou a quantia no prazo que lhe foi fixado. Compreendeu?
– Explico já tudo. Quando fui condenada, deram-me esse prazo. Mas foi numa altura muito complicada na minha vida, esses anos… 2015, 2016, 2017… Bom, não cumpri, mas viemos aqui, falámos com a ofendida, foi feito um acordo, tudo dentro da legalidade. Foi então estabelecido que a senhora aceitava 200 euros por mês até perfazer a quantia. Eu nunca falhei!
A procuradora pôs cara de não ir almoçar sem perceber uma coisa:
– É que eu não estou a perceber: está aqui nos autos um requerimento a dizer que pagou 16 500 e que falta pagar 21 620. Ora se a senhora estava obrigada a pagar 25 mil…
– Ah, já sei o que é que a sotora… É os juros! Se eu tinha de pagar 25 mil, o advogado da ofendida fez as contas e…
A procuradora começou a ler o processo, que pediu à juíza.
– Vamos ver se a gente se entende, porque a senhora está aqui a laborar num erro muito grande em seu desfavor. A senhora, por conta da pena em execução, tem de pagar 25 mil euros. Tem de pagar, com urgência, mais quase nove mil euros!
Então, a audiência começou a aquecer e o almoço a esfriar.
– Eu pergunto-lhe como é que é isto de não pagar. A senhora falta-lhe pagar… 8 600 euros. É o que está na sentença!
A advogada da mulher abriu a boca:
– De facto é o que está na sentença mas posteriormente, em 2018, em 30 de Janeiro, foi feito um acordo entre a…
– Com o devido respeito que a sotora me merece, aquilo que é lavrado em sentença é para ser cumprido! Acordos quantitativos laterais não têm eficácia na suspensão da execução da pena. Sotora, se a sua cliente não pagar os 25 mil euros, o que é que lhe acontece? É-lhe revogada a suspensão e ela cumpre pena de prisão!
Não se percebia se a procuradora estava furiosa com o valor final gigante a pagar à vítima da mulher (16 500 + 21 760 = 38 260 €), ou se, presa a legalismos, queria mandar a burlona já para a prisão.
– Sotora, eu, eu, eu, eu… eu devo dizer, com o devido respeito, a condenação é para pagar o valor fixado na sentença inicial!, dizia a procuradora à juíza.
Mas o acordo posterior fora aceite pelo tribunal. Na verdade, pensei, o advogado da senhora burlada conseguira, com respaldo legal, transformar a dívida numa operação bancária com juros altíssimos. E passando a dívida para os herdeiros, em caso de morte. Crescer de 25 mil para mais de 38 mil: uma burlona meio burlada.
– Eu paguei sempre, sem falhar!
– A minha pergunta é esta: para cumprir esta pena, a senhora tem de pagar os 25 mil. Como é que pretende pagar?
– Tal e qual como estou a pagar, eu não tenho outra hipótese!
– Porque devido à situação económica da senhora, a senhora não pode ir além, interveio a juíza, pedagogicamente.
– Ainda estou a criar uma filha!, guinchou a mulher.
A advogada lembrou que em 2019 houve prorrogação do prazo.
– Exactamente, disse a juíza, aliviada.
– Ó sotora, com o devido respeito! É que a transacção, com o devido respeito, num processo civil, não faz efeitos numa extinção da pena, com o devido respeito, sotora!
Mas a juíza encerrou os trabalhos, de cara fechada.
– Depois já falo consigo, senhora procuradora.
Ninguém mostrava agora fome ou apetite.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)